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O advogado e o porte de arma

Por Luís Inácio Adams*

No Dia do Advogado, 11 de agosto, foi divulgada notícia de que o senador Flavio Bolsonaro estaria propondo um projeto de lei para alterar o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil e permitir a todos os advogados o porte de arma. Ao mesmo tempo, circulam notícias de eventos patrocinados por algumas seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil, particularmente a do Distrito Federal, promovendo eventos de tiro para advogados.

O porte de arma é uma agenda recorrente no cenário político brasileiro, especialmente em espaços corporativos. Quando exerci o cargo de procurador da Fazenda Nacional, o tema compunha a agenda de demandas corporativas da categoria, que se justifica na paridade de armas (aqui literalmente) com juízes e procuradores da República. Tive, inclusive, a oportunidade de experimentar pelo período de um ano o direito de portar arma (a qual nunca tive o interesse de possuir), mediante uma autorização específica na minha carteira profissional.

O tema tem apelo similar no seio de outras áreas das corporações de Estado, notadamente as de fiscalização. No último dia 30 de abril, foi editada a Portaria nº 32, publicada no Boletim de Serviço da Receita Federal do Brasil (RFB), estabelecendo a autorização do porte de arma de fogo, particular ou institucional, dentro e fora do serviço, aos auditores fiscais e aos analistas tributários da RFB. Tal autorização é mais uma etapa de um processo de idas e vindas sobre o tema e, no futuro, provavelmente será novamente revogada.

Antes de mais nada, é preciso que se registre um ponto fundamental: arma de fogo é um instrumento destinado a matar. Ela pode ser usada para outras finalidades (esportiva, como o campeonato de tiro), mas sua função primordial é a violência e a morte. Não é como, por exemplo, uma faca, que também pode ser usada com um instrumento de violência, mas usualmente é destinada à atividade culinária.

Sendo um instrumento usado para a violência, o direito ao porte não pode ser banalizado. Quem usa uma arma de fogo em nome do Estado deve fazê-lo quando as suas atribuições institucionais assim demandarem e somente após estar com a devida capacitação para isso. Não é um instrumento para ser usado com tiro ao esmo, em direção a alvos indefinidos (entre os quais podem estar seres humanos inocentes). Igualmente, não pode ser instrumento de intimidação da sociedade em geral pelo Estado, mas apenas para o combate ao crime e, particularmente, aos criminosos que apelam à violência.

Dentro da perspectiva acima, o porte generalizado de armas de fogo para a fiscalização tributária é algo que não faz sentido nenhum na perspectiva da atividade que exercem — da mesma forma que não o faz para advogados. Para a fiscalização tributária, o porte de arma de fogo só faz sentido nos termos em que já era autorizado: quando acompanhando a autoridade policial em operações de combate ostensivo ao crime, notadamente os de contrabando e descaminho.

Durante os 24 em que exerci a função de procurador da Fazenda, integrando a administração tributária, nunca existiu uma atividade em que o porte de arma de fogo fosse necessário. A atividade de fiscalização tributária é extremamente burocrática e, em grande parte, executada através de sistemas de computação que analisam as informações disponibilizadas pelos contribuintes. É um trabalho essencialmente realizado em um escritório e, nestes tempos de pandemia, até em casa. Qual é a necessidade do porte de arma de fogo nessas situações? Nenhuma! Exceto, é claro, se o objetivo for intimidar o contribuinte quando exercita o seu direito de contraditar o Estado. Como uma vez registrei ao então ministro da Fazenda Guido Mantega, quando recebia do secretário da Receita Federal uma proposta semelhante à que é adotada hoje pela Portaria 32 de 2021, é inadmissível sequer cogitar que os contribuintes possam ser recebidos por fiscais com um revólver calibre 38 em cima da mesa.

O advogado, igualmente, terce armas usando a lei como instrumento, não a violência ou a intimidação. A argumentação e a razão são os fundamentos do Direito, e a civilização humana construiu nos últimos séculos um sistema de Direito voltado ao combate do uso indiscriminado e arbitrário da força e da opressão. Portanto, a arma de fogo não tem lugar nesse ambiente, exceto se quisermos retornar ao exercício da intimação e da violência como realização do Direito, ou melhor, da ausência dele. Um Estado em que, como na Idade Média, o julgamento divino favorece àquele mais forte.

Na verdade, o porte de arma de fogo também possui aqui um estatuto diferente. É uma espécie de medalha a ser exibida nos corredores do Estado e perante a sociedade. É uma "qualidade " de quem porta a arma que o destaca na multidão. Essa função de reconhecimento nobiliárquico, próprio de um país que nunca superou integralmente seu período imperial, explicita o quanto estamos longe de ser uma República de cidadãos, respeitosa ao império do Direito, da lei e da justiça. A "paridade de armas" entre advogados, juízes, promotores e fiscais do Estado nada mais indica que a razão e o Direito devem ceder à intimidação e à violência.

Melhor anda a Ordem dos Advogados do Brasil quando defende maior transparência do Estado, igualdade de tratamento e acesso das partes aos órgãos de decisão, especialmente aos juízes, e respeito aos direitos fundamentais pelos agentes do Estado.

O problema, ao final, é que o status e o reconhecimento desejados pelas corporações profissionais não são demonstrados por algo inofensivo como uma medalha, mas pelo direito de usar uma arma de fogo, cujo uso só resulta em tragédias.

*Luís Inácio Adams é advogado e ex-procurador da Fazenda Nacional. Foi Advogado-Geral da União (2009 a 2016).

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Conjur