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Gasto de R$ 1,5 mi com cloroquina pelo Exército não teve aval do Ministério da Saúde, diz Mandetta

Ex-ministro da Saúde afirmou que a ordem para aumentar a produção do remédio pelo Laboratório do Exército foi tomada pelo presidente Jair Bolsonaro e pelo Ministério da Defesa, sem passar por análise técnica da Anvisa. Laboratório está sendo investigado pelo TCU por possível superfaturamento

O ex-ministro Luiz Henrique Mandetta deixou o governo federal por desavenças com o presidente Bolsonaro envolvendo o uso da cloroquina e o distanciamento socialO ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta afirmou nesta quarta-feira (24) que não participou da decisão de ampliar a produção de cloroquina pelo Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército, que já gastou mais de R$ 1,5 milhão na fabricação do medicamento, conforme revelou a Repórter Brasil. Segundo Mandetta, a decisão partiu do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) – sem o respaldo técnico do Ministério da Saúde. 

“Não [participei da decisão]. Isso foi anunciado na época diretamente pelo presidente. Ele colocou nas redes sociais que teria telefonado para o primeiro-ministro da Índia solicitando o envio da matéria-prima, e que mandaria o Laboratório do Exército iniciar a produção”, disse Mandetta em entrevista à Repórter Brasil.

O Laboratório do Exército entrou no alvo do Tribunal de Contas da União (TCU) na segunda-feira (22), por suposto superfaturamento nas compras de cloroquina em pó. O laboratório gastou seis vezes mais para adquirir o insumo farmacêutico importado da Índia. O TCU vai apurar também se houve “gestão de risco” na decisão de aumentar em 100 vezes a produção do medicamento, mesmo sem a comprovação de que haveria benefícios para tratar a covid-19.  

Após ordem de Bolsonaro, Exército ampliou produção de cloroquina em seu laboratório, mesmo sem articulação com o Ministério da SaúdeNo pedido feito para que o TCU investigue o caso, o subprocurador-geral Lucas Rocha Furtado, do Ministério Público, disse haver “evidente ineficácia administrativa” que resultou em “desperdício de recursos públicos”. Furtado pediu ainda que se apure a “responsabilidade direta do presidente da República” na orientação e determinação da produção.   

“Até onde eu sei, essa decisão foi tomada diretamente pelo presidente com o Itamaraty [Ministério de Relações Exteriores]”, afirmou Mandetta. “Eu não me lembro de isso ter ocorrido alguma vez na história, de um presidente determinar a fabricação de um remédio. Se voltarmos no tempo, acho que isso nunca aconteceu.” 

A produção em massa de cloroquina pelo Exército começou em 23 de março, apenas dois dias após o presidente Bolsonaro anunciar publicamente a ampliação da produção. Desde então, o laboratório público assinou pelo menos 18 contratos sem licitação para ampliar a produção do medicamento – a maioria para a compra da cloroquina em pó. Os recursos saíram do Tesouro Nacional e foram repassados ao laboratório pelo Ministério da Defesa. Na mesma semana, o Ministério da Saúde publicou protocolo indicando o medicamento apenas para pacientes graves e em ambiente hospitalar.

Segundo Mandetta, o estoque de cloroquina no final de março era suficiente para dar conta desta demanda. “A gente tinha estoque de cloroquina com tranquilidade, porque a Fiocruz já produz o medicamento para o programa de malária, então era muito tranquilo para atender os casos [graves de covid-19]”, afirmou.

‘Decisão deveria ser técnica’

As divergências entre Mandetta e Bolsonaro com relação à cloroquina foram um dos motivos que levaram à saída do ex-ministro do governo, em 16 de abril. Mandetta se recusou a assinar protocolo que ampliaria o uso da medicação para os casos leves da doença. “O que precisaria [para justificar o aumento de produção] era o Ministério da Saúde fazer alguma portaria indicando o uso em grande escala, mas nós entendemos que não tinha por que fazer isso”.

A produção de cloroquina pelo laboratório do Exército passou de 265 mil comprimidos em três anos para 2,25 milhões em três mesesEssa determinação ocorreu apenas em 20 de maio, cinco dias após a queda do segundo ministro da pasta, Nelson Teich, que deixou o governo também por divergências envolvendo a cloroquina. Teich afirmou esta semana que a decisão de ampliar o uso da medicação no SUS deveria ser “técnica”, e não “emocional”.

A incorporação de medicamentos no SUS depende de respaldo técnico da Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS), vinculada à Anvisa. “A primeira análise que se faz é para que serve o medicamento. Na bula, esse medicamento [cloroquina] não tem indicação para quadro viral respiratório. Até hoje nunca foi colocada essa indicação. Então teria que passar primeiro pela Conitec, para depois o ministério publicar um protocolo e assim estar autorizado a fazer a aquisição. Mas isso não foi feito enquanto estive no ministério”, confirmou Mandetta.

Luiz Marinho, secretário-executivo da Alfob (associação que representa 19 laboratórios farmacêuticos públicos), afirma que a programação de produção de medicamentos é decidida, geralmente, de forma articulada entre o laboratório público e o Ministério da Saúde, que é o principal comprador. “Dos laboratórios oficiais, 90% dos produtos são para o SUS e 90% deve ser para o Ministério da Saúde. O laboratório não toma nenhuma atitude isolada de produção sem que não haja uma programação. Esse é o rito processual”, diz.

A Presidência da República e o Ministério da Saúde foram procurados pela Repórter Brasil, mas decidiram não comentar as declarações do ex-ministro. Já o Ministério da Defesa disse que prestará esclarecimentos quando for questionado pelo TCU.

Desperdício de recursos?

Parlamentares da oposição apontam possível desperdício de recursos públicos na decisão de ampliar a produção da cloroquina. “Foi uma determinação direta do Bolsonaro ao Exército, por meio de uma política esdrúxula, sem nenhuma consulta prévia nem embasamento médico, técnico ou científico. E o interessante é que o Exército cumpriu imediatamente”, criticou o deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP).

Em resposta a ofício do parlamentar, o Comando do Exército informou que o laboratório produziu 265 mil comprimidos de cloroquina nos últimos três anos, destinados ao tratamento de militares acometidos por malária e lúpus. Desde 23 de março, porém, a produção aumentou 100 vezes, alcançando 2,25 milhões de comprimidos.

Quase três semanas após o Exército iniciar a produção, a Sociedade Americana de Doenças Infecciosas publicou documento no qual indicava a cloroquina apenas para pacientes internados e dentro de protocolos de pesquisa. O Conselho Federal de Medicina nunca chegou a recomendar o remédio para a covid-19 no Brasil, destacando a falta de comprovação científica, mas estabeleceu em abril algumas condições para autorizar a prescrição, deixando a decisão para o médico, com consentimento do paciente. 

Para Valente, a produção do Laboratório do Exército demonstra uma “intromissão descabida” de Bolsonaro, já que ele determinou o “aumento brutal de produção baseado numa hipótese”. “Ele achou que a cloroquina era um elixir mágico salvador do povo brasileiro, mesmo contra todas as determinações científicas”, disse o parlamentar.

Já o deputado Ricardo Barros (PP-PR), que é ex-ministro da Saúde e presidente da Frente Parlamentar da Indústria Pública de Medicamentos, descartou a hipótese de superfaturamento. “A brusca elevação do consumo em todo mundo fez com que os custos das matérias-primas, que dependem de importações da China e da Índia, disparassem três, quatro ou mais vezes acima do preço regular, como lei básica da oferta e da procura”, afirmou.

Barros disse também que não seria necessário acionar a Anvisa antes de ampliar a produção de cloroquina, já que os produtos destinados a covid-19 estão recebendo “tratamento especial por parte das autoridades sanitárias, inclusive com autorização de importação de produtos sem registro no Brasil”. 

Nesta quarta-feira, o TCU aprovou relatório que aponta falta de “diretrizes” do governo federal no combate ao novo coronavírus, o que poderá causar mais casos de covid-19 e mortes pela doença, além de desperdício de dinheiro público. Até hoje o Ministério da Saúde não divulgou os estudos e pareceres técnicos que fundamentaram a indicação da cloroquina para os casos leves de covid-19.

Na semana passada, a Organização Mundial da Saúde suspendeu o uso de cloroquina para a doença. Na contramão dos indícios científicos, o governo federal decidiu, no mesmo dia, ampliar o uso para crianças e gestantes em tratamento contra o novo coronavírus.

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Repórter Brasil