Manifestantes mostram placas com fotos de vítimas da ditadura durante protesto em julho de 2019
Por Eduardo Reina
O nome dela é Julia. Mas podia ser Rosângela, Iracema, Ieda, Lia Cecília, Juracy, Giovani, Miracy, José, Antônio, tantos outros. Todos esses nomes pertencem a vítimas de um dos crimes mais cruéis cometidos pelas forças de repressão durante a ditadura civil-militar entre 1964 a 1985: foram sequestrados ainda bebês e crianças, e entregues a famílias de militares ou ligadas a eles. Um crime que permaneceu escondido do povo brasileiro, dos livros de história, das universidades e da mídia em geral por quase 40 anos, e que só agora vem sendo denunciado.
Julia é a personagem criada por Bernardo Kucinski no romance Julia: nos campos conflagrados do Senhor (Alameda, 2020). Ele narra a história ficcional de uma mulher que depois de adulta descobriu ser vítima do crime de Estado cometido pelas forças militares na ditadura. Forças da repressão tiravam bebês e crianças de suas famílias biológicas, por acreditar que poderiam criar um Brasil “livre do comunismo”, com a anuência de parte do empresariado, intelectuais e Igreja. Foi criado um esquema de operação envolvendo cartórios, hospitais, Justiça, funcionários públicos e os próprios militares.
O livro de Kucinski, que chega às livrarias este mês, contribui, em demasia, para quebrar essa narrativa de paz e prosperidade criada pelos militares desde o golpe de 1964 no Brasil. Quebra a patente de que as histórias militares são as verdadeiras e a oposição inimiga era totalmente criminosa e desqualificada. Ajuda a revelar a existência de brasileiros que hoje não têm nome, não têm RG, desconhecem seus pais biológicos, não sabem quantos anos têm, ou qual a data de seus aniversários. São apenas fantasmas à procura de sua verdadeira identidade, de sua família real. Mortos socialmente.
Imagine chegar aos 40 anos de idade e descobrir que você não é você. Que a família onde vem vivendo há décadas não é a sua. Que as pessoas ao seu lado não são e nunca foram seus pais. E que tudo o que você sente e sentiu não vale mais nada. É essa situação que Kucinski imaginou e escreveu sobre Julia, uma bióloga. Após a morte de seus pais, Julia passa por atritos com os irmãos. O centro da discussão é um apartamento da família. Em meio a reformas do imóvel, ela descobre documentos que revelam seu passado “invisibilizado” e um passado obscuro da história brasileira, envolvendo o regime militar, os militares, uma ala da igreja e uma série de outras pessoas. Descobre que sua mãe biológica era militante de esquerda, no interior de São Paulo. Seu pai, arguto professor, escondeu a verdadeira história por anos a fio.
Uma situação com enorme verossimilhança vivida pelos personagens reais, de carne e osso, cujas histórias estão retratadas no livro reportagem “Cativeiro sem fim”, ouvindo histórias reais que o Brasil viveu durante o governo militar. Uma dessas personagens, Rosângela Serra Paraná, aos supostos 46 anos de idade, após uma discussão em família, se vê diante da realidade desconhecida e da violência de Estado. Descobre que sua mãe biológica (desconhecida) era uma “agitadora política”, segundo esses familiares. Rosângela foi apropriada possivelmente no fim da década de 1960 por uma família de militares, depois de ter sido retirada da mãe biológica. O pai apropriador, Odyr de Piava Paraná, um soldado do Exército, com família com integrantes de vários escalões militares, era motorista do então general e presidente da República Ernesto Geisel.
Kucinski, que é professor da Universidade de São Paulo, viveu na pele o que a ditadura no Brasil foi capaz de fazer. Perdeu uma irmã Ana Kucinski, professora universitária e militante da Aliança Libertadora Nacional (ALN), sequestrada e desaparecida junto com o marido Wilson Silva, em 1974. A história de Ana se transformou em livro, K – Relato de uma busca (Expressão Popular, 2011), que recebeu versão em 13 idiomas e revela a sordidez da ditadura brasileira. Nesta obra, Kucinski mistura fragmentos da história real da irmã e do cunhado com memórias pessoais e da família e muita imaginação.
Em Julia, Kucinski mostra que a cadeia de pessoas envolvidas em roubo de crianças envolve escrivão, delegado, despachante, religiosos, militares, servidores públicos. Expõe ainda a existência de outros crimes correlatados a essa situação, que carecem de investigação e apuração jornalística: o envio dos filhos sequestrados de oposicionistas para outros países. No livro de Kucinski, eles vão para a Itália, por 10.000 dólares cada. Mas na ditadura chilena, por exemplo, esses bebês eram vendidos a 2.000 dólares cada um. Será que isso não ocorreu também por aqui no Brasil, de verdade?
O enredo criado por Kucinski prende o leitor até o ponto final do texto, num paralelo com a realidade escondida da ditadura civil-militar e com o Brasil atual do negacionismo, das fake news e das narrativas distópicas. Nem os próprios militares poderiam ter imaginado uma situação dessas. Cidadãos se descobrindo vítimas do crime cometido pelos militares.
A ditadura militar foi vista e difundida por parte da literatura e da mídia como um período histórico que trouxe benesses aos brasileiros e ao país. Mas que varreu para debaixo do tapete muita sujeira e corrupção e tornou invisíveis as histórias desses brasileiros sequestrados pelos militares logo ao nascer ou durante a infância.
Um crime que foi registrado em vários países na América do Sul. Na Argentina, foram 500 as vítimas. Também houve situação semelhante no Chile, no Uruguai, no Paraguai, na Bolívia. Governos de alguns desses países apuraram responsabilidades dos envolvidos, sendo que na Argentina ex-presidente da República, Jorge Rafael Videla, e toda cadeia de comando militar, foram presos e responsabilizados por este crime.
Além da privação de identidade de cidadãos brasileiros, o sequestro e apropriação dessas pessoas tinham muitos objetivos. O primeiro era colocar em prática os ensinamentos da guerra antirrevolucionária, aprendida nas escolas da França, Inglaterra e Estados Unidos. Pregavam a necessidade de exterminar os inimigos.
Nas décadas de 1960 e 1970, as forças militares que deram o golpe em abril de 1964 acreditavam – a semelhança com o país hoje – que o comunismo iria tomar o poder, tomar Brasília e transformar o território nacional numa Cuba, num Vietnã. Para “evitar” que isso ocorresse, declararam inimigos todos aquelas pessoas e instituições contrárias ao pensamento defendido pelos militares (note outra coincidência atual).
Exterminar o inimigo era, então, mais do que necessário. Iam além. Precisavam acabar com toda e qualquer pessoa/situação que estivesse agregada aos inimigos. No caso, seus filhos e até amigos. Assim que o golpe foi dado no Brasil, os militares ditadores declararam guerra contra os cidadãos envolvidos, ou que presumidamente estivessem envolvidos, nas mais variadas atividades políticas.
Também condenaram ao esquecimento a memória dessas vítimas, forçaram medidas de censura e invisibilidade. Criaram preconceito negativo e de crueldade a qualquer brasileiro que pensasse diferente aos preceitos por eles idealizados.
A vida dessas pessoas de carne e osso, e da ficcional Julia, está intimamente vinculada à violência e à dor. Suas histórias permaneceram escondidas, pois se não se fala o que dói, a violência silencia.
Julia: nos campos conflagrados do Senhor, (Alameda, 2020).
Eduardo Reina é jornalista, autor de Cativeiro sem Fim (Alameda, 2019)
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El País
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