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Se a pandemia não chegou ao fim, por que pessoas fazem fila nos shoppings

15.jun.2020 - Britânicos fazem fila para entrar em uma loja da Primark na reaberta de atividades não essenciais após o surto de covid-19, no MK1 Shopping & Leisure Park, em Milton KeynesÉ conhecida a história de que foi o pai do governador João Doria Jr. (PSDB), de São Paulo, quem criou o Dia dos Namorados no Brasil. As vendas naquele junho de 1948 estavam meio caídas, e então o publicitário criou a data para movimentar o mês. Hoje, o 12 de junho é a terceira comemoração mais importante do varejo brasileiro, atrás do Natal e do Dia das Mães. Por causa da pandemia de Covid-19, mais uma data comercial corria o risco de ser prejudicada.

Na última semana, no entanto, algumas cidades resolveram reabrir as lojas de rua e os shopping centers a tempo do Dia dos Namorados. Um meme circulou na internet, dizendo que em 11 de junho, data de reabertura do comércio, as pessoas sairiam para comprar o presente para parceiro, pegariam Covid-19, passariam para o seu amor no 12 e, até o fim do mês, poderiam ser, até, enterrados juntos. Apesar do peso macabro da piada, até 11 de junho a cidade de São Paulo registrava quase 5 mil óbitos por Covid-19. Mesmo com números tão alarmantes, muita gente não se intimidou e fez fila nas portas do comércio. Passada a data comercial, já são mais de 190 mil casos da doença e 11 mil mortes no estado.

A ansiedade para voltar a consumir, no entanto, não é exclusividade do povo brasileiro. Mesmo sem data comercial, franceses e australianos fizeram fila para comprar iPhone e britânicos para comprar roupas e acessórios na Primark. O Reino Unido, inclusive, só perde para o Brasil em número de mortos pela Covid-19. Mas, se a pandemia não chegou ao fim nem aqui nem na Europa (e nem na China), por que as pessoas estão tão ansiosas para voltar às compras? Se as economias estão quebradas, como tem gente preocupada com a troca do celular — a ponto de sair de casa para comprar, em vez de escolher online?

"O ato da compra fala muito mais sobre quem nós somos. O consumo é parte da nossa identidade", explica Gabriel Rossi, especialista em marketing e comportamento do consumidor e professor da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing). "Consumir hoje não é mais ter, é ser", afirma. A ideia capitalista, que transformou a aquisição de bens em identidade, explica parte do comportamento visto nas grandes cidades de formação de filas nas portas das lojas.

8.jun.2020 - Reabertura de shopping em Madri, na Espanha, durante pandemia do novo coronavírusUm presente não é mais apenas um presente, mas uma demonstração de afeto. Um celular novo não é apenas um produto de qualidade, mas algo que imprime status. "O consumo não se esgota na compra", afirma Fábio Luís Ferreira Nóbrega, doutor em filosofia pela USP (Universidade de São Paulo) e psicanalista. "Cada vez mais os produtos não são apenas seu valor de uso e seu valor de troca, eles vêm revestidos de símbolos que contaminam aqueles que os possuem. Vejo pessoas dizendo que, sem poder comprar, se sentem vazias e enfraquecidas."

Indo além, há também o aspecto do que os centros de compras representam na sociedade: "Não são apenas espaços de lazer. Eles funcionam como lugar de troca e de socialização. Há diferentes dinâmicas sociais num shopping que ultrapassam o mero ato da compra", diz Nóbrega. E, ainda, é preciso limitar geograficamente a análise: as relações desenvolvidas pelas pessoas com um centro de compras ou uma rua de comércio na periferia é diferente da que acontece com quem mora em um bairro de classe média, aponta o filósofo.

11.jun.2020 - Fila para entrada de loja no BrásRossi concorda e acrescenta: "A experiência dentro do shopping, o convívio, a interação com outras pessoas, fazem com que a ida às compras passem a impressão de que há algo de normal voltando".

Para Paola Almeida, psicóloga clínica e professora de psicologia comportamental da PUC-SP(Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), é natural que as pessoas fiquem ansiosas para voltar às compras, o que significa voltar à normalidade. "As pessoas ficaram muito tempo carentes das coisas que estavam acostumadas a fazer, que produziam consequências recompensadoras. Elas saíam para comer, saíam para fazer compras. Essa restrição só aumenta o valor dessas atividades."

Mas não acabou

O problema é que a pandemia não chegou ao fim — nem a quarentena no Brasil. Inevitavelmente, a maior circulação de pessoas pelos centros comerciais levará a um aumento no número de casos e também de mortes por Covid-19. O problema da reabertura do comércio atinge tanto quem compra quanto quem é obrigado a voltar a trabalhar atrás dos balcões. O relaxamento da quarentena poderá aumentar em 71% o número de mortes no estado de São Paulo, de acordo com um estudo da USP e da FGV (Fundação Getúlio Vargas). Com a reabertura do comércio, o total de mortes no estado pode chegar a 24.900, até a primeira semana de julho.

No Shopping Interlagos, filas de diferentes estabelecimentos se juntaram e criaram aglomeração no corredorÉ difícil considerar esses números na hora de sair de casa, porque o contágio demora a ser percebido. "A transmissão do novo coronavírus tem um efeito atrasado, não é imediato", aponta Almeida. "Se eu fosse ao shopping e já saísse doente, a chance de estar na rua seria menor. A gente não coloca a mão num interruptor, porque leva um choque imediatamente. Mas, no caso da Covid-19, pode ser que eu vá e fique doente em cinco, dez, 15 dias, ou que não tenha nenhum sintoma. Não existe uma condição natural que ajude a gente a evitar o contato com o vírus."

Para alertar os perigos, resta o controle social. O problema, segundo especialistas, é que as orientações divergem: enquanto alguns ainda defendem a campanha para permanecer em casa, outros negam o distanciamento social como medida efetiva para conter a pandemia. "Temos figuras públicas dando regras contraditórias, então as pessoas se sentem autorizadas a sair", afirma a psicóloga.

Medida de temperatura no Shopping Nova América no Rio de Janeiro; coronavírusUm posicionamento único e claro sobre o isolamento social faria as pessoas aderirem mais à conduta, diz Gilberto Martin Berguio, médico sanitarista e professor da escola de medicina da PUC-PR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná). "Não há consenso entre as autoridades, não tem um direcionamento", afirma. "As pessoas não estão conseguindo compreender com muita clareza o que está acontecendo. Houve um primeiro momento de adesão maciça ao distanciamento social, mas que coincide com o auge da Europa. Isso teve uma repercussão que reforçou o distanciamento social aqui. Mas agora eles estão com a doença em declínio e a gente acabou sendo movido um pouco por essa sensação, passou o modismo europeu. Mas por aqui, ainda estamos em fase de ascensão."

Para o médico, não há dúvida de que os casos vão aumentar com a maior circulação de pessoas e os cuidados devem ser mantidos. "O ideal é se manter em casa, sair para o que for absolutamente necessário, seja resolver problemas ou trabalhar. Nada justifica ir passear no shopping ou fazer um churrasco no fim de semana. E as recomendações são as mesmas: lavar as mãos a todo momento, passar álcool em gel e usar máscara obrigatoriamente", alerta.

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