Comércio de bebidas durante a quarentena em Calcutá, na Índia: vendas de álcool dispararam no mundo todoSete meses após a descoberta da covid-19, diferentes países se deparam com um problema que costuma ficar à margem dos debates sobre epidemias e grandes crises econômicas: os impactos à saúde mental.
O assunto já era negligenciado antes que o coronavírus se tornasse uma preocupação mundial. Um estudo publicado na revista científica britânica The Lancet, em 2018, mostrou que 13,5 milhões de vidas poderiam ser salvas por ano com aprimoramentos nas políticas de saúde mental. Em quase todas as regiões analisadas, os serviços prestados eram mais precários do que daqueles voltados à saúde física.
“Temos pouca informação sobre os efeitos de pandemias anteriores na saúde mental, justamente porque as pesquisas estavam concentradas nos temas econômicos, sociais, antropológicos, e no tratamento da doença em si”, lembra o médico e pesquisador peruano Jeff Huarcaya-Victoria. “Mas sabemos que os altos níveis de contágio, com milhares de mortes, e as notícias frequentes de falta de equipamentos e leitos nos hospitais, somados, podem provocar vários danos, como ansiedade, stress e depressão”.
Embora a covid-19 seja um fenômeno recente, dezenas de pesquisas pelo mundo já demonstram esses efeitos psíquicos – não só da doença, mas das próprias medidas de contenção. “A quarentena tem que ser vista como um tratamento. E, como qualquer tratamento, para atingir seu objetivo, causa certos efeitos indesejados”, resume Huarcaya-Victoria.
Um levantamento realizado na China, na fase inicial da pandemia, mostrou que 13,8% das pessoas passaram a manifestar sintomas depressivos leves, 12,2% apresentaram sintomas moderados e 4,3%, graves.
Nos Estados Unidos, um canal de emergência oferecido pelo governo para pessoas com sofrimento emocional registrou um aumento de 1.000% nas ocorrências em abril, segundo o jornal Washington Post, em comparação com o mesmo mês do ano passado.
“Se fosse uma pandemia de ebola, HIV ou tuberculose, seria diferente, porque já conheceríamos as formas de transmissão e tratamento. Porém, estamos diante de um vírus novo, ainda desconhecido, por isso gera tanta incerteza e insegurança”, explica o médico peruano.
O aumento global na venda de bebidas alcoólicas durante a quarentena sintetiza essa preocupação. No Brasil, dados publicados pela Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas (Abead) em maio apontam crescimento de 38%.
A Rússia é um caso emblemático. Campanhas de conscientização com alto investimento público, iniciadas em 2003, levaram 13 anos até atingir 40% de redução no consumo de bebidas alcoólicas. Em um mês de quarentena, porém, a venda de bebidas já retornou ao patamar do final dos anos 1990 – com aumento de 47% no caso do uísque.
“Estudos [em diferentes países] apontam que 40% das pessoas estão bebendo menos do que antes da covid-19”, lembra Matthew Parker, professor da Escola de Farmácia e Ciências Biomédicas da Universidade de Portsmouth, no Reino Unido. Outros 40%, em média, não percebem mudanças no seu consumo de álcool durante o período de isolamento.
“Isso significa que os 20% que relatam beber mais durante o lockdown são responsáveis, sozinhos, pelo aumento global nas vendas de álcool, o que gera preocupação do ponto de vista da saúde pública”, completa Parker.
O afastamento dos amigos e da família e as mudanças de rotina geralmente são temporários, por conta da quarentena, mas a ciência não descarta danos a médio e longo prazo.
“Suponhamos que, antes da pandemia, uma pessoa tenha hábito de consumir álcool apenas quando sai com os amigos no fim de semana. Durante a quarentena, ela começa a beber sozinha em casa, durante a semana. Ao final do lockdown, pode ter sido adquirido um novo hábito, beber sozinho, sem excluir o hábito anterior de sair com os amigos e beber nos fins de semana”, exemplifica.
“Isso não quer dizer que apenas essa mudança de hábitos seja responsável pelo vício, mas indivíduos em risco (por exemplo, aqueles com predisposição genética e certos traços de personalidade) devem iniciar o ciclo do vício em algum momento. É possível, portanto, que a quarentena abra caminho para hábitos de consumo insalubres e arriscados”, finaliza o cientista.
A epidemia de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS, pela sigla em inglês) na Ásia em 2003, que também impôs a necessidade de quarentenas, alavancou o consumo de álcool em vários países. Em Hong Kong, por exemplo, um ano após os primeiros casos da doença, 15% das mulheres afirmava beber mais do que antes da epidemia. Os números nunca retornaram ao patamar anterior.
O consumo insalubre de álcool em casa durante a quarentena não é apenas uma preocupação sanitária, mas pode estar associado ao aumento dos casos de violência doméstica, por exemplo, ou ao uso insalubre de substâncias ilícitas.
É esse conjunto de efeitos, de difícil mensuração, que fez com que a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendasse aos governos limitar ou controlar a venda de bebidas durante a quarentena.
“Na África do Sul, as vendas de álcool foram completamente proibidas e houve uma importante redução nas internações relacionadas ao álcool e nos incidentes policiais”, lembra Matthew Parker. “Essa medida também traz certos problemas, porque o consumo pode disparar quando a venda for novamente liberada. No entanto, o impacto para a saúde pública do país provavelmente será menor do que se muitos tivessem desenvolvido hábitos perigosos de bebida durante o lockdown.”
Parker concorda que os governos devem impor algum tipo de restrição, considerando que os sistemas públicos de saúde e assistência social estão sobrecarregados por conta da pandemia.
“Pode haver, por exemplo, horários limitados de venda ou aumento no preço mínimo do álcool (por exemplo, preço mínimo por grama de álcool) para reduzir o que chamamos de consumo prejudicial. Ainda faltam pesquisas que examinem o custo-benefício da limitação da venda de álcool versus a proibição total”, pondera.
Com 1,3 bilhão de habitantes, a Índia alternou períodos de proibição, restrições parciais e liberação do comércio de álcool durante o lockdown. Cada estado teve autonomia para estabelecer regras. A média de consumo nacional caiu, mas o país também registrou casos extremos durante a quarentena, como furtos a lojas de bebidas e até suicídios por abstinência.
“A Índia deve se preparar para um grande número de suicídios”, afirmou Karthik Muralidharan, professor de Economia na Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, em artigo publicado no jornal indiano Hindustan Times em maio.
O autor faz um paralelo com os efeitos da crise de 1929, que teria causado 10 mil “suicídios econômicos” nos Estados Unidos, no Canadá e na Europa, segundo pesquisadores da Universidade de Oxford e da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres.
Mais de 150 milhões de indianos têm distúrbios mentais diagnosticados antes do início da pandemia. O índice de suicídios no país também é superior à média mundial – por dia, são registrados mais de 600, segundo a OMS.
“A Índia rural pode ser particularmente suscetível ao suicídio devido ao afluxo de trabalhadores migrantes e também porque abriga a comunidade de agricultores em risco”, aponta Muralidharan, que considera um fator de risco o acesso facilitado a pesticidas no campo.
Os estudos mais consistentes que associam economia e suicídios têm como objeto a chamada “Grande Recessão” que atingiu os EUA entre 2007 e 2010. Cada ponto percentual a mais na taxa de desemprego teria gerado um aumento de 1,6% nas taxas de suicídio.
O instituto de políticas para saúde mental Meadows, no Texas, estima que 4 mil pessoas devem cometer suicídio e outras 4,8 mil morrerão por overdose de drogas no país em consequência do desemprego em massa provocado pela pandemia.
Para além dos impactos econômicos ou do pânico causado pelo vírus, o isolamento social, por si só, é um dos fatores associados ao suicídio. Fontes consultadas pelo Brasil de Fato apontam, no entanto, que não há dados atualizados que comprovem um aumento global nos últimos meses.
Também nesse caso, os impactos devem ser mais perceptíveis a longo prazo. O número de suicídios nos Estados Unidos, por exemplo, dobrou após a “Grande Recessão” e segue crescendo, 12 anos depois.
Para o médico peruano Jeff Huarcaya-Victoria, a sobrecarga de informações sobre a covid-19 produz efeitos tão nocivos quanto a completa desinformação das primeiras pandemias.
“Se, mesmo no ambiente científico, as informações são incompletas e contraditórias, imagina como isso chega aos jornais ou às redes sociais”, compara. “A completa falta de informação gera ansiedade e medo. Mas, agora, estamos ‘hiperinformados’, e esses dois extremos afetam a saúde mental. É preciso buscar um equilíbrio, buscando informação em meios oficiais ou canais que deem informação de qualidade.”
“É função do Estado apontar quais são os canais oficiais, orientar sobre as notícias falsas que circulam no Facebook ou no Whatsapp”, completa o médico peruano. “Os governos precisam fazer grandes campanhas de difusão de informações precisas, confiáveis, como fez a China. Lá, o governo investiu pesado para que todas as pessoas estivessem devidamente informadas sobre os sintomas, os tratamentos, e sobre o risco da automedicação”.
Huarcaya-Victoria observa no Peru dois fenômenos que evidenciam a necessidade de intervenção estatal: a alta adesão a métodos de prevenção sem comprovação científica e as longas filas para compra de bebidas durante a quarentena. Além de regular as informações e o comércio de substâncias, ele sugere que os governos estejam atentos aos grupos de maior risco.
“Nossos estudos demonstram, por exemplo, que um dos principais fatores de risco é ser mulher. Elas têm manifestado maiores níveis de depressão, ansiedade e estresse, por diferentes motivos. A proporção é de três para um, em relação aos homens”, revela. “Então, as estratégias de saúde mental devem priorizar a atenção às mulheres. Lembrando que, na América Latina, os casos de violência doméstica também cresceram na quarentena.”
Outros grupos de risco, segundo o médico peruano, são profissionais de saúde e pacientes com outras doenças graves, que veem ameaçada a continuidade de seus tratamentos e sabem que têm maiores chances de morrer se contraírem o coronavírus. O Estado, segundo os pesquisadores, deveria propor alternativas para atendê-los sem obrigá-los a sair de casa em meio à pandemia.
“Obviamente, se você não possui um smartphone ou computador, ou tem problemas para usar o software, a telemedicina não faz sentido. Pacientes com paranoia grave, cuja doença psiquiátrica os faz acreditar que coisas como o governo os espia pelo telefone, geralmente não confiam no programa de telemedicina, portanto, também não é uma boa alternativa para eles. Mas, para a grande maioria dos pacientes, é uma ótima opção”, ressalta Adriane Dela Cruz, professora do Departamento de Psiquiatria da Universidade do Texas.
“Isso é especialmente verdadeiro para pacientes que cuidam de crianças ou familiares mais velhos que não podem sair em casa sozinhos para ir ao médico, pacientes que moram fora das grandes cidades ou que se sentem constrangidos por vir ao médico”, completa a especialista. “Quando usamos a telemedicina, não usamos máscaras. Isso também é algo positivo, que nos leva a pensar sobre a diferença entre ver todo o rosto e expressões do paciente no computador, e vice-versa, em comparação com estar na mesma sala do paciente, mas incapaz de ver metade do rosto deles.”
O desafio da inovação é amplificado em países subdesenvolvidos, com sistemas de saúde e assistência social frágeis, ou que desmantelaram e reduziram investimentos no setor nos últimos anos, como o Brasil. A Emenda Constitucional 95, do “Teto de Gastos”, por exemplo, sancionada pelo ex-presidente Michel Temer (MDB), fez o Sistema Único de Saúde (SUS) perder R$ 13,5 bilhões no ano passado.
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Brasil de Fato
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