Frida Kahlo e Diego Rivera em 1937A Wikipedia é o grande projeto que melhor preserva o espírito original da Internet: gratuito, aberto e sem fins lucrativos. Mas há muros de preconceito que não podem ser rompidos com dados e banda larga. E isso significa que, apesar dos esforços, a enciclopédia colaborativa mantém um viés machista e ocidental. Oito em cada dez editores da versão em espanhol são homens, e essa sub-representação de mulheres de um lado da tela se transfere, de forma idêntica, para o outro lado: 80% dos perfis pessoais neste projeto são do sexo masculino.
Montserrat Boix vai à biblioteca Ca la Dona todos os meses. Faz isso com um grupo variável de amigas, “entre seis e 10”, para resgatar a biografia de mulheres sepultadas sob o peso da história. “Pegamos livros, selecionamos acontecimentos e depois os lançamos na Internet”, explica esta veterana wikipedista, com mais de uma década (e 26.000 edições) na plataforma. “Agora estamos com as mulheres da Transição [espanhola]", ressalta, citando o movimento que levou a Espanha à democracia após a ditadura franquista. A Wikipedia é uma fonte terciária, o que significa que cada fato mencionado em seus verbetes tem que redirecionar o leitor para uma bibliografia prévia: um artigo, um livro ou um trabalho científico. Por esse motivo, antes de destacar o legado das mulheres em formato digital, é preciso resgatá-lo do analógico. O trabalho das wikipedistas termina na Internet, mas começa vasculhando antigos livros de história.
Boix é a cofundadora da Wikimujeres, um grupo dedicado a reduzir a diferença de gênero na Wikipedia em espanhol. “Melhoramos bastante o panorama”, admite com orgulho, “agora somos cerca de 20% dos perfis femininos. Está bem, não é muito, mas quando começamos mal passavam de 15%”. Boix enfatiza que a discriminação não é apenas numérica, mas mental: não se trata de criar perfis de mulheres, mas de dotá-los de uma perspectiva de gênero. E não é fácil. Frida Kahlo era definida até 2005 como filha de Guillermo Kahlo e mulher de Diego Rivera, e não por seus próprios méritos como artista. Eleanor Roosevelt era a mulher de um presidente norte-americano, antes de escritora, ativista e defensora dos direitos humanos.
Montserrat Boix dá instruções para editar a Wikipedia durante a ’editatona’ pelo Dia das Escritoras, em Oviedo em 2016Para corrigir essas distorções, foram criadas em todo o mundo as Maratonas de Edição (em espanhol, chamadas de editatonas) realizadas por mulheres wikipedistas que se organizam para editar, de forma coordenada, um período histórico ou cultural específico, na perspectiva de gênero.
“Graças às editatonas, a Wikipedia em espanhol é uma das mais plurais do mundo”, diz Anna Torres, diretora executiva da Wikimedia Argentina, e muito ativa nessas empreitadas. “E ainda há muito o que fazer.” Torres ressalta a importância de incorporar as wikipedistas nesse trabalho. “Cada uma escreve sobre o que mais lhes interessa. Se houver poucas mulheres na Wikipedia, muito pouco será escrito sobre suas realizações."
A Wikipedia é grande, mas isso não significa que seja diversa. Em sua última edição, a Enciclopédia Britânica possuía 32 volumes. Somente o texto atual da Wikipedia equivaleria a 2.700, ocupando o espaço de 14 prateleiras do tipo billy. São 50 milhões de verbetes escritos em 300 idiomas. É um oceano de conhecimento e, no entanto, possui enormes lacunas.
O perfil do wikipedista médio é o de um homem branco, jovem e heterossexual. Isso cria um reflexo distorcido da realidade, no qual certos setores do conhecimento estão superdimensionados, enquanto outros têm uma representação exígua. “É um espelho social”, concorda Torres. "Os papéis de gênero, os estereótipos e até mesmo a importância de certos temas em relação a outros são reproduzidos quase como um decalque.” Um exemplo prático: se você fizer uma busca por “Pokémon” na Wikipedia, aparecerão milhares de artigos que revelam os menores detalhes dessa série de jogos e desenhos. Se procurar “cientistas espanhóis do século XX”, serão exibidos 2.590 resultados, divididos em 21 subcategorias. Se tentar com “cientistas espanholas” do mesmo período, aparecerão 72 resultados.
A verdade relativa e outros vieses
Parece um asséptico site acadêmico, mas os bastidores da Wikipedia revelam uma realidade cheia de vida. É fácil mergulhar neles: pode-se correr a cortina com apenas um clique. A aba Discussão, situada na margem superior esquerda da tela, revela os meandros da maior rede de conhecimento contemporâneo. Por trás dela, 250.000 pessoas a editam mensalmente. É a cara humana (e humanista) da enciclopédia on-line, e como tal significa um reflexo da sociedade mundial. Um reflexo deformado.
Há apenas 52.000 artigos na Wikipedia bengali (idioma falado por 237 milhões de pessoas), enquanto a versão sueca possui cerca de quatro milhões de entradas que podem ser lidas por somente 10 milhões de pessoas. Não se trata de uma questão meramente idiomática. Muitos fatos históricos são contados de uma perspectiva anglo-saxã ou eurocêntrica.
Poderia se pensar que todos os fatos são como são, independentemente da nacionalidade de quem os narra, mas não é assim. O que pensaria um europeu se lhe dissessem que a gravidez humana dura 10 meses? O mesmo que um japonês ao escutar que a gravidez dura nove. As verdades mudam conforme o lugar onde são contadas: o crepúsculo dura 20 minutos no Equador e quase uma hora nos círculos polares; os continentes são cinco se contados na Europa e sete se os enumera um americano. As certezas absolutas não existem nem sequer na ciência... o que dizer na história. A entrada do “Descobrimento da América” na Wikipedia gera controvérsia a começar por seu próprio nome, que muitos rejeitam totalmente dizendo que é mais realista falar de “invasão”.
Torres considera que a Wikipedia em espanhol, ao ser editada entre um grupo de países bastante ativos, oferece uma visão mais equilibrada da história, mas o viés continua presente, pois “há uma visão ocidental em todos as Wikipedias”. Boix concorda, e busca uma explicação na tradução automática das entradas. “Se depois não são editados, todos os temas têm uma perspectiva anglo-saxã”, afirma. Um recente estudo citado pelo The Guardian denuncia como a maioria dos conteúdos sobre África foram escritos por homens da Europa e da América do Norte. “Se uma mulher nigeriana fizer uma consulta on-line, encontrará apenas biografias sobre as pessoas que vê diariamente nos jornais”, lamentava o texto.
Caberia perguntar por que essa hipotética mulher não liga seu computador e escreve ela mesma as biografias. A possibilidade existe. “Mas não o ambiente”, rebate María Sefidari, presidenta da Fundação Wikimedia. “É certo que, na teoria, qualquer pessoa com um computador e uma conexão (o que em si é limitante) pode editar na Wikipedia”, reflete. Mas não se mudam esses papéis em poucos anos.
Sefidari está ajudando a forçar essa mudança. Faz quase 15 anos que a psicóloga e professora universitária tem vínculo com a Wikipedia. Ela entende o trabalho dos wikipedistas como uma forma de ativismo. Em primeiro lugar, para proporcionar informações gratuitas, livres e independentes. Mas também para jogar luz sobre temas que foram obscurecidos ou apagados pela história. Em seu caso, ela começou agregando informação sobre o coletivo LGBT, e depois se interessou em destacar personagens femininas da história. Seu processo foi natural e agradável: ela começou a editar e simplesmente gostou. Mas sabe que não é assim com todas as mulheres. Muitas não se atrevem a editar na Wikipedia por um motivo simples: acham que não têm direito.
“Faz séculos que estamos acostumadas a estar em segundo plano. Algo tão sério como uma enciclopédia estava reservado aos homens. É muito difícil mudar essa mentalidade”, diz. A história parece lhe dar razão. A prestigiosa Enciclopédia Britânica, grande referência do enciclopedismo moderno, contava com mais de 100 editores e cerca de 4.000 colaboradores, entre os quais ex-presidentes e prêmios Nobel. O masculino da frase anterior não é meramente genérico. Inclusive Diderot, com suas ideias revolucionárias e ilustradas, quis abrir a enciclopédia “a homens de um valor inestimável para os quais os portais das academias estiveram fechados devido à sua condição social.” Não, continua sem ser genérico.
Historicamente, as mulheres não saíam nas enciclopédias. Muito menos as escreviam. Os homens brancos e ocidentais impunham sua visão de mundo. Sefidari considera que algo disso chegou aos nossos dias. Há muitas mulheres que têm inseguranças e medos. E se não têm, sempre há alguém disposto a incuti-los. O assédio na Wikipedia é menor que em outras redes, já que tem uma função social muito limitada. Mas existe, e se intensifica em determinados perfis. “Não veem quem você é, pois você não tem que especificar seu nome real nem seu sexo no perfil, mas veem o que você edita”, explica. “Você vê vozes que se apagam, gente que editava e de repente deixa de fazê-lo e entende, intui, o que pode ter acontecido.” A ideia de mulheres como Boix, Sefidari e Torres é que, por cada voz que se apagar, surjam muitas outras. Homens e mulheres, caucasianos e racializados, compondo juntos um relato equilibrado e inclusivo da realidade. Somos as histórias que contamos. Por isso, elas consideram importante que toda a sociedade participe da narração dessas histórias.
O problema é estrutural e parece se perpetuar ao longo do tempo. Essa enciclopédia na Internet reflete séculos de machismo, épocas em que o papel da mulher era ocasional, mas o problema é que continua a manter uma perspectiva eminentemente masculina, o que distorce ainda mais um passado (e presente) em que as mulheres são invisibilizadas. Essa é a realidade que as wikipedistas querem mudar.
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El País
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