O cientista brasileiro Marcus Lacerda e sua equipe vivenciaram um pesadelo particular na tempestade da pandemia de coronavírus. Da noite para o dia, a politização da cloroquina, um fármaco, os atingiu como um meteorito. Esse infectologista, que coordena um experiente grupo de pesquisas dedicado à malária, tuberculose e HIV, nunca imaginou estar envolvido em algo assim. Ainda mais trabalhando em um local tão distante dos centros de poder, como Manaus, a capital do Amazonas. Uma cidade em plena selva tropical em que quase todos chegam de avião ou barco.
O gatilho para os ataques —incluindo ameaças de morte— foi um ensaio clínico com 81 pacientes hospitalizados por Covid-19 e tratados com cloroquina. O medicamento clássico para o tratamento da malária se tornou famoso em meio mundo com a pandemia, graças à direita populista, que o transformou em uma de suas bandeiras. “O linchamento começou assim que os resultados foram publicados”, explica Lacerda por telefone, de Manaus.
O estudo de Manaus foi realizado com a mesma cautela de sempre, embora fossem tempos de emergência. Teve todas as bênçãos das autoridades –incluindo o comitê de ética do Brasil. O consórcio de pesquisadores liderado por Lacerda, da Fundação de Medicina Tropical, pretendia analisar a letalidade e toxicidade de diferentes doses de cloroquina em pacientes com Covid. Assim se descobre como combater novas doenças. Nosso estudo levanta bandeiras vermelhas suficientes para que se pare de usar altas doses de cloroquina porque os efeitos tóxicos superam os benefícios", escreveu Lacerda em seu artigo no Journal of American Medical Association (Jama).
O ensaio foi suspenso antes do previsto porque 11 dos pacientes morreram. Esses graves riscos, publicados na Jama em abril, não impediram Donald Trump de anunciar há uma semana que toma hidroxicloroquina para prevenção, e seu colega Jair Bolsonaro de divulgar um protocolo sobre seu uso por médicos que assim optarem. Na sexta-feira passada, The Lancet publicou o maior estudo sobre os dois fármacos, que demonstra eles aumentam o risco de morte em pacientes com Covid. E nesta segunda, a OMS declarou a suspensão de ensaios clínicos com esses medicamentos.
“A primeira frustração foi saber que a cloroquina não funcionava; a segunda, descobrir que as pessoas interpretavam o julgamento como um ataque a Bolsonaro”, diz o infectologista. As conclusões da equipe de Manaus foram valiosas para milhares de médicos que tratam pacientes com coronavírus. Mas para a internacional nacional-populista aquilo era um boicote.
“Comecei a receber ameaças de morte, me diziam que eu ia perder meus filhos, que iria acabar como Marielle Franco (a vereadora assassinada em 2018 no Rio de Janeiro)", lembra Lacerda, em Manaus, que registra um dos surtos mais graves no Brasil. Muitas ameaças eram anônimas, mas um tuíte do deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, os colocou como alvo de milhões de internautas. “Um estudo clínico realizado em Manaus para desqualificar a cloroquina causou 11 MORTES após os pacientes receberem doses bem acima do padrão”, tuitou o filho de Bolsonaro, ressaltando o dado com letras maísculas. Lacerda teve que ser escoltado.
Embora nos Estados Unidos e na Europa o remédio somente seja usado em pacientes em estado grave e de modo compassivo, a febre da cloroquina chegou ao ponto, no Brasil, de plano de saúde privado distribuir 30.000 kits com o medicamento a seus clientes em Fortaleza, relata Marina Rossi.
Diante desse panorama, muitos cientistas se sentem impotentes. Um tuíte aniquila facilmente diante da opinião pública as conclusões de um ensaio clínico publicado nas revistas de maior prestígio. "As sociedades científicas saíram em nossa defesa, mas as pessoas comuns acreditam nesse tuíte", explica o infectologista brasileiro.
Os defensores da cloroquina triunfam nas redes sociais brasileiras com a cumplicidade do presidente, que criou um clima de hostilidade diante do desprezo aberto da ciência quando suas conclusões contradizem seus desejos ou discurso. Vítimas de ataques furiosos, os cientistas do ensaio brasileiro foram levados à Justiça. E o trabalho que realizaram agora é investigado por promotores em Bento Gonçalves, cidade do Rio Grande do Sul, a quase 4.500 quilômetros de Manaus.
Diante da propaganda do Governo brasileiro, nos hospitais as famílias dos pacientes pedem cloroquina cada vez com mais frequência, diz Carlos, médico de 31 anos que atende pacientes de covid-19 em unidades de terapia intensiva, tanto na rede pública como na privada do Ceará. O médico, que pediu para ter sua identidade preservada, viu a cloroquina entrar no vocabulário de pacientes de todas as classes sociais e há um mês começou a pedir às famílias de seus pacientes públicos e privados que assinassem um consentimento. Uma precaução dos centros de saúde para evitar problemas legais e que faz parte do protocolo do Ministério da Saúde para a utilização do remédio.
Médico há seis anos anos, Carlos diz que desde o início da pandemia prescreve cloroquina a pacientes sem problemas cardíacos. Não se sente pressionado, como ouviu de colegas que trabalham em clínicas ambulatoriais. Diz que não é contra o uso do medicamento no estágio inicial da doença e, em casos leves, em linha com o que foi aprovado nesta semana pelo Governo Bolsonaro, mas enfatiza que fazer isso com segurança exigiria que os pacientes fossem diagnosticados por meio de uma análise e testá-los para ver se têm arritmia cardíaca. O teste de covid-19 não é realizado no Brasil em pacientes em estado leve e o segundo teste não é fácil de conseguir na rede pública. “Por isso, é complicado porque no nível do Brasil, que tem uma grande desigualdade social e dificuldades para acesso a medicamentos e exames, é muito difícil”, diz ele. O médico, entretanto, afirma que quando propõe o termo de consentimento à família do paciente, "99% assinam assim mesmo. As pessoas decidem mais pela fé do que pela ciência”.
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El País
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