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O embate entre Anvisa e Rússia em torno da Sputnik V

Agência brasileira vetou a importação da vacina russa contra a covid-19 apontando, entre outros fatores, a presença de adenovírus replicante. Instituto russo nega, e governadores tentam garantir a compra do imunizante

O desespero de parte da classe política brasileira com o avanço do coronavírus no país, enquanto a campanha de imunização patina pela falta de vacinas, leva representantes de governos estaduais e prefeituras a tentar reverter o veto da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) à importação emergencial da Sputnik V, imunizante desenvolvido pelo governo russo.

O Consórcio Nordeste, que reúne nove estados brasileiros e 57 milhões de habitantes, viu frustrada a expectativa de importação emergencial de 37 milhões de doses da vacina russa, mas solicitou uma revisão da decisão técnica da agência com base em novas documentações enviadas pelo Ministério da Saúde da Rússia, na última quinta-feira (29/04). Em conjunto com a demanda dos estados nordestinos, outros cinco estados e grupos de prefeituras também esperam adquirir a Sputnik V, com expectativa de entrada total de 66 milhões de doses no Brasil.

A decisão da Anvisa, tomada por unanimidade pela diretoria da agência no dia 26 de abril, apontou uma série de pontos técnicos não informados e respondidos pelo Instituto Gamaleya, o desenvolvedor da vacina russa. Pelo menos duas constatações da Anvisa causaram apreensão na comunidade científica sobre a segurança da vacina: a presença de impurezas e, mais grave, de adenovírus replicante.

De acordo com a Anvisa, o pedido de importação analisado e rejeitado foi feito por dez estados e envolvia a compra de 29,6 milhões de doses. O Brasil vacinou, até o final de abril, menos de 15% da população com a primeira dose. A desarticulação do governo federal e os constantes atrasos de calendário do Plano Nacional de Imunização (PNI) têm provocado a corrida de gestores públicos do país em busca de alternativas e de ajuda internacional por novas vacinas.

A despeito de a comunidade científica brasileira elogiar os apontamentos feitos pela Anvisa e seu caráter técnico, a decisão intrigou os governadores do Nordeste, que ancoravam-se no fato de a Sputnik V já estar sendo aplicada em 62 países, incluindo México e  Argentina.

Três dias após a decisão da Anvisa, o Comitê Científico do Consórcio Nordeste convidou o médico virologista Amilcar Tanuri, titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), para uma avaliação independente do caso. Membro da Academia Brasileira de Ciências, biofísico, geneticista e especialista em genética molecular na Universidade de Sussex, Inglaterra, Tanuri tem pesquisas reconhecidas internacionalmente sobre o vírus zika e o HIV.

"Falta de comunicação adequada"

Logo após a negativa da Anvisa, o Instituto Gamaleya, ligado ao Ministério da Saúde russo, enviou um documento de 55 páginas, em inglês, aos técnicos da agência regulatória brasileira. Esse relatório, que rebate ponto a ponto da decisão da Anvisa, contém também resultados de testes clínicos feitos em janeiro deste ano e que, portanto, já poderiam ter sido enviados à agência brasileira.

De acordo com o cientista Amilcar Tanuri, os novos documentos enviados pelo governo russo à Anvisa, na última semana, revelam que os testes clínicos não detectaram nenhum vírus replicante na vacina. Na opinião do professor da UFRJ, o caso parece ser "uma sucessão de enganos por falta de comunicação adequada". "A Anvisa  não conseguiu os dados necessários do Gamaleya. Para uma agência regulatória, vale o que está escrito nos testes", afirmou à DW Brasil.

Segundo o virologista, parece que parte da confusão reside no fato de que há diferentes padrões utilizados pela agência regulatória dos Estados Unidos, a FDA, que inspira a atuação da Anvisa, e pela agência regulatória russa. A agência russa, explica Tanuri, permite em testes o uso de vírus replicante por dose de vacinas até 30 vezes superior ao limite estabelecido pela FDA. Mas isso é um limite aceitável estabelecido, não significando que os testes da Sputnik V tenham sido feitos com vírus replicantes e tampouco com esse volume máximo autorizado.

Com base nos novos documentos disponibilizados na semana passada, Tanuri fez uma revisão do método de purificação utilizado pela Sputnik V. "Usam a célula correta, que evita o vírus replicante."

O adenovírus é um carregador que leva o material genético do vírus (no caso o coronavírus) à célula. O adenovírus replicante consegue reter de volta o material genético do vírus e se multiplicar na célula em que está sendo inoculado, o que pode gerar consequências imprevisíveis. Por isso o apontamento da Anvisa foi visto com espanto. "Quando eles analisam lote a lote da produção da vacina, deu zero partículas por teste. Não acharam adenovírus replicante. Mas a Anvisa não tinha essa informação", conclui Tanuri.

"A nova documentação que os russos mandaram mostra que a vacina fica retida no músculo [em que é injetada], o que diminui o risco sistêmico e é mais uma salvaguarda. Acho que agora os documentos são os necessários para garantir a importação emergencial", explica Tanuri. Ele ressalta que a Sputnik V fez testes clínicos com 22 mil pessoas, e isso não é um número desprezível.

O professor reconhece que as análises para uso emergencial de uma vacina são muito menos rigorosas do que a rotina normal de avaliação de uma agência regulatória, mas ressalta que não estamos vivendo um momento de normalidade e que "a situação no Brasil é terrível". Ele observa que, em casos de liberação emergencial, a Anvisa é obrigada a exigir do laboratório um programa de fármaco-vigilância. "Se alguma coisa der errado, suspende-se imediatamente a vacinação. O pior é quando entregam a licença emergencial e depois não verificam mais nada."

Para aumentar a segurança e resolver o imbróglio, Tanuri sugere que o Consórcio Nordeste se comprometa com a Anvisa e o Supremo Tribunal Federal, por exemplo, a apresentar uma "análise de vírus replicante, microbiologia e contaminantes" de todos os lotes que chegarem ao Brasil. "E aí acabou a história. A Rússia manda, junto com a remessa de doses, essa análise."

O lado da Anvisa

"As conclusões da Anvisa para o pedido de importação foram tomadas a partir das informações encaminhadas pelo próprio Gamaleya e também confirmadas em reunião com a Anvisa. A Anvisa também se utilizou de informações buscadas junto a outros países e bases científicas", esclareceu a agência em resposta a questionamentos da DW Brasil.

O laboratório União Química, que fabrica a Sputnik V, fez, no dia 26 de março, segundo a agência, novo pedido de uso emergencial da vacina no Brasil. "Trata-se de um novo pedido, ou seja, um novo processo sem dependência do processo anterior. O pedido de uso emergencial da União Química é independente e separado do pedido de importação feito por alguns estados brasileiros."

Estados veem componente político

Ex-ministro da Ciência e Tecnologia do Brasil e coordenador científico do Consórcio Nordeste, Sergio Rezende afirma que os governadores vão insistir na importação emergencial. "O Brasil precisa de muitas vacinas. Recebemos com surpresa a negativa da Anvisa."

Ele ressaltou que dias após a decisão o Instituto Gamaleya divulgou uma nota explicando os quatro estágios de purificação da vacina, descartando a existência de impurezas no imunizante. Outro documento relevante é a nota técnica de 55 páginas e diversos outros esclarecimentos e testes. "Para o Gamaleya, os argumentos da Anvisa para não autorizar a importação não são justificáveis."

O ex-ministro reconheceu que a "Anvisa tem um corpo técnico de primeira qualidade", mas ele pessoalmente considera haver um componente político, de diretores indicados pelo atual governo brasileiro para a agência, para negar a importação.

"Agora a Anvisa está de posse de informação técnica entregue oficialmente pelo Instituto Gamaleya. Espero que corrijam a decisão. Se necessário, podem pedir que façam novos testes. A polarização política não interessa a ninguém. Queremos vacinas. E que a ciência prevaleça."

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DW