Profissionais de saúde na linha de frente do combate ao coronavírus no hospital Nossa Senhora da Conceição, em Porto Alegre, na sexta-feira, 17 de abrilEntre esta semana e o mês de junho, cerca de 100.000 pessoas no Brasil serão submetidas a testes da covid-19, como parte do maior estudo em andamento sobre a disseminação do novo coronavírus na população brasileira. Realizada pela Universidade Federal de Pelotas (Ufpel), no Rio Grande do Sul, a pesquisa terá três etapas, em uma modelagem amostral que vai permitir calcular com precisão o índice de contágio do vírus, algo que ainda não foi feito em escala nacional. “É o maior estudo do mundo. Na Áustria, foi feito um com 1.500 pessoas, em Santa Clara, nos Estados Unidos, testaram cerca de 3.000 pessoas. Houve outra pesquisa em Gangelt, na Alemanha, mas bem menor, e na Itália foram feitos 3.300 testes em um levantamento”, compara Pedro Hallal, reitor da Ufpel e epidemiologista.
Em cada uma das três etapas serão testadas 33.250 pessoas em 133 municípios brasileiros. Serão aplicados tanto testes rápidos, que detecta a presença de anticorpos IgM (de infecção mais recente), e IgC (de infecção mais antiga) a partir de amostras de sangue coletadas. Os exames devem começar a ser aplicados logo depois do feriado de Tiradentes, em 21 de abril. Mas o reitor da instituição espera poder duplicar as fases do levantamento, caso receba mais testes do Ministério da Saúde. “Essa é uma doença desconhecida. O que está em jogo é a decisão sobre se vamos acompanhar sua evolução através de um filme curta-metragem ou de um longa-metragem.”
Nelson Teich defendeu a realização de testes em massa, ao tomar posse como novo ministro da Saúde do Governo Jair Bolsonaro, na semana passada. “Quanto mais a gente entender da doença, maior vai ser a nossa capacidade de administrar o momento, planejar o futuro e sair desta política do isolamento e do distanciamento. Para conhecer a doença, a gente vai ter que fazer um programa de testes”, afirmou, referindo-se à hipótese de ampliar o volume de exames que indiquem o percentual de contágio entre os brasileiros. O epidemiologista e reitor da Upfel vê com otimismo a declaração do novo ministro e espera ter condições para que o estudo se estenda por seis fases, como previsto originalmente, e não precise limitar-se apenas as três aprovadas pela pasta.
O Ministério da Saúde havia anunciado apoio ao levantamento da Ufpel ainda sob a gestão de Luiz Henrique Mandetta. "Tem muita gente assintomática que ganha anticorpos ou mesmo pessoas com sintomas leves e, por isso, nem procuram atendimento. Temos ainda as formas intensas, graves e críticas. É o somatório disso que nos dará a imunidade”, afirmou na ocasião Mandetta, ao anunciar a parceria com a universidade do RS. São 12 milhões de reais de financiamento do Governo federal, mais 1 milhão de reais do Instituto Serrapilheira. “Três fases não são suficientes para conhecer a fundo o comportamento da pandemia. Ela está muito no começo em vários lugares. As seis fases permitiriam enxergar a epidemia crescendo onde ela ainda está menor, que é a realidade de quase todos os Estados da Federação. Só teremos ganhos em ampliar a pesquisa”, argumenta o reitor.
As primeiras conclusões do estudo, que já começou no Rio Grande do Sul, apontam que há pelo menos sete vezes mais casos no Estado do que os confirmados oficialmente pelas autoridades. Isso significa que ao invés dos 904 doentes reportados até esta segunda-feira pela Secretaria Estadual de Saúde, pelo menos 6.328 gaúchos já foram contaminados pelo vírus ―um sexto dos mais de 40.000 casos confirmados no país pelo Ministério da Saúde, cujos dados também são subnotificados.
O Rio Grande do Sul, que é o sexto Estado mais populoso do Brasil (com quase 11,3 milhões de habitantes), contabilizava 27 mortes pela covid-19, quase sete vezes menos que o Amazonas, por exemplo, que tem três vezes menos habitantes e somava 185 mortes até esta segunda. Para Hallal, uma eventual expansão das fases de pesquisa enriqueceria as análises comparativas, que são fundamentais para compreender a curva de expansão do novo coronavírus em território nacional, assim como as especificidades de cada região brasileira.
O epidemiologista Pedro Hallal, reitor da Universidade Federal de Pelotas, que conduz o maior estudo sobre a propagação da covid-19 no Brasil em andamentoDado pode amparar decisão sobre distanciamento social
A pesquisa conduzida pela Ufpel não apenas vai apontar a taxa de contaminação por covid-19 na população brasileira, mas deverá determinar também o percentual de casos assintomáticos e a real letalidade da doença no país. Todas essas informações hoje são estimadas com base em dados subnotificados no Brasil, o que dificulta o cálculo sobre os recursos hospitalares necessários para o enfrentamento da pandemia.
A falta de estatísticas confiáveis também torna mais complexa a decisão sobre a manutenção ou o abrandamento das medidas de isolamento social -que por ora dominam o país, apesar da militância do presidente Jair Bolsonaro pela retomada plena da economia e manutenção apenas do isolamento dos grupos de risco. “Aproximadamente 70% da população vai ser infectada. Uma verdade. Não adianta correr da verdade”, disse Bolsonaro nesta segunda, ao voltar a defender a reabertura da economia.
“Certamente falta evidência. As decisões estão sendo tomadas com o que existe da parte visível do iceberg, o que a gente consegue olhar da experiência do Brasil e do mundo. A nossa pesquisa vai permitir que os gestores parem de ficar olhando só para o que está em cima da água, e compreendam o todo”, explicou o reitor Pedro Hallal, em entrevista ao EL PAÍS.
Conforme a previsão já acertada com o Ministério da Saúde, os testes e questionários da Ufpel serão aplicados em 22 municípios do Norte, 42 municípios no Nordeste, 14 no Centro-Oeste, 33 no Sudeste, 21 cidades do Sul e 1 no Distrito Federal). Serão três etapas de campo, com intervalos de 15 dias entre elas - e os dados coletados serão divulgados sempre ao final de cada uma.
No Rio Grande do Sul, comércio voltou a funcionar
No último dia 15, mesmo dia em que Pedro Hallal apresentou os dados da primeira etapa de campo da pesquisa no Estado (que indicaram contágio sete vezes superior ao reportado pelas autoridades), o governador do Estado Eduardo Leite (PSDB) anunciou a suspensão das medidas de contenção social para a maior parte do território gaúcho. A decisão que surpreendeu, na medida em que a expectativa divulgada anteriormente era de que o pico de casos no Rio Grande do Sul chegasse apenas em junho.
Ficaram de fora da decisão apenas as regiões metropolitanas de Porto Alegre e da Serra Gaúcha. “No outro dia de manhã, as prefeituras liberaram tudo, sem ter um plano de reabertura. Sabemos que quem tomou essas decisões no resto do mundo, se arrependeu profundamente”, lamenta Pedro Hallal, da Ufpel.
O debate sobre a questão estava acirrado desde a virada do mês, quando 15 municípios do interior se sublevaram e decidiram reabrir estabelecimentos comerciais à revelia de um decreto estadual que determinava fechamento total até 15 de abril. Foi preciso que o Ministério Público interviesse para que os prefeitos cumprissem as determinações do governador, alertando que eles poderiam responder por crime de responsabilidade caso mantivessem abertas as lojas.
No centro dessa área de colonização italiana, alta atividade industrial e PIB relevante para o Rio Grande do Sul está Caxias do Sul, a cidade da Festa da Uva, cujos pavilhões abrigam moradores de rua durante a pandemia. É a segunda cidade com maior volume de casos de covid-19 no Estado, com 44 notificações confirmadas. A partir da suspensão do decreto de Eduardo Leite, o prefeito Flávio Cassina (PTB) autorizou a abertura inclusive de shoppings centers, desde que a força de trabalho se mantenha restrita a 50% do habitual.
“Proporcionalmente à população, temos poucos casos: são 510 mil habitantes”, justifica Cassina. O município tem 60% de seus leitos de UTI ocupados, porém dois hospitais de campanha já estão prontos para serem ativados em caso de necessidade, cada um com cerca de 70 leitos , o que eleva a tranquilidade do prefeito sobre sua decisão.
Pelotas, a cidade onde está a universidade que Pedro Hallal gerencia, e governada pela prefeita Paula Mascarenhas (PSDB), sucessora do próprio governador Eduardo Leite na cadeira municipal, não aderiu à liberação. “Como pesquisador, não gosto de trabalhar com futurologia. A maioria dos que tem feito previsões sobre o pico da doença tem errado. Mas aqui em Pelotas nosso grupo de pesquisa criou um modelo a partir de dados reais que prevê para a primeira semana de junho o momento de maior gravidade”, estima.
Em 1º de abril, manifestantes pró-Bolsonaro pediram a reabertura do comércio em Porto Alegre, numa carreataPrefeito da Capital quer testes no padrão sul-coreano
Epicentro da epidemia do novo coronavírus no Rio Grande do Sul, Porto Alegre dobrou a aposta no isolamento social com a contratação de caminhões tipo trios elétricos, que começaram a circular pela cidade com alertas para que a população fique em casa. Até então, esse serviço era feito pela Guarda Municipal, em automóveis munidos de alto falantes simples.
“Estamos vivendo uma crise em que a vida real se impõe, e a lei e as decisões judiciais chegam muito depois dos fatos ocorridos. Dois ou três dias podem salvar muitas vidas. Por isso entendemos que era coerente essa medida e implantamos imediatamente para que mesmo pessoas desavisadas se conscientizem. Não é pela lei que vamos mudar os hábitos, é pela cultura de conscientização”, justifica o prefeito Nelson Marchezan Júnior (PSDB), que tem sido rigoroso na manutenção do isolamento social.
Marchezan trabalha com três indicadores para estimar o comprometimento da capital do Rio Grande do Sul com a epidemia. O número de mortes por covid-19 -que até essa segunda-feira eram dez- e o volume de ocupação de leitos de UTI na cidade, que tem atualização em tempo real divulgada na internet são os dois principais neste momento.
Por isso sua energia está agora totalmente canalizada para conseguir aplicar centenas de testes diários na população porto-alegrense. “Nosso esforço é para chegar ao patamar de testagem do país mais bem sucedido, que é a Coreia do Sul. Eles fizeram 400 testes ao dia, provavelmente não vamos conseguir tanto, mas queremos chegar perto para ter um diferencial de conhecimento e proteção”, explica.
O prefeito ainda não sabe detalhar a estratégia para chegar lá, uma vez que o mundo inteiro enfrenta problemas para conseguir ampliar a testagem da população. Atualmente, a Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre aplica 30 testes diários, e há um reforço de exames enviados pelo Ministério da Saúde. “Estamos tentando conseguir com nossas próprias forças (do SUS), e também pedindo ajuda a instituições privadas. Essa é uma prioridade”, conclui.
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El País
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