IBOVESPA 107.398,97 −6.278,28 (5,52%)

Opinião

Precarização do trabalho precário

Por Marcelo Uchoa

Vídeo veiculado na internet pelo movimento “Treta no Trampo” vem demonstrando a humilhação que é trabalhar como entregador de aplicativos. Rappi, Uber Eats, iFood, James, Loggi, não interessa, todas estas empresas, algumas das quais multinacionais, vêm lucrando aos montes. E não é apenas com o aumento das solicitações de entrega em casa, em função da pandemia, mas, também, com a exploração sobre seres humanos que, em sua luta diária pela sobrevivência, não possuem outra alternativa de vida senão arriscar-se às ruas para, por um lado, satisfazer o desejo de quem pode se poupar em casa e, por outro, robustecer os cofres das organizações que representam. 

Organizações que, diga-se de passagem, nada produzem, apenas intermediam o recrutamento de mão-de-obra barata para realizar a entrega de um produto produzido noutra empresa a um terceiro destinatário. 

Empresas que se dedicam, única e exclusivamente, a atender um pedido via internet (on-line) e viabilizar, indiretamente através do labor alheio, a entrega pessoal do produto solicitado. Para a literatura neoliberal, afeita a recorrer a anglicanismos, são startups online-to-offline (O2O).

Entregadores de aplicativos não gozam de reconhecimento de vínculos de emprego, recebem por corridas e são selecionados para estas através de pontuações obtidas por decisões unilaterais das O2O. 

Essas, por sua vez, obedecem a critérios amplamente subjetivos, que podem ser tanto os feedbacks positivos dos solicitantes das encomendas, como outros menos civilizados. Por exemplo, o não trabalho às sextas à noite, aos sábados e aos domingos não gera pontos; a indisposição de cumprimento de largos percursos ou idas a sítios em locais perigosos, por contraprestações pecuniárias miseráveis, também não gera; paralisação por panes em motocicletas ou bicicletas, idem; o mesmo para acidentes sofridos no trânsito. 

Para as empresas que produzem as encomendas, são trabalhadores autônomos. Para as organizações a que servem, são empreendedores semeando oportunidades na crise. Para os que solicitam a entrega, pouco importa. Se um não pode cumprir a tarefa, outro pode. 

Em resumo, são descartáveis. Seres humanos disponíveis ao abate pelos riscos da pandemia, do trânsito, da criminalidade, na dureza do sol a pino, assumindo por conta própria todos os ônus e incertezas da atividade econômica, pela inexistência de proteção trabalhista, cobertura previdenciária, apoio social. Sequer sindicatos possuem, já que formalmente não compõem categoria. Uma situação inequivocamente vexatória. Em termos laborais, a precarização de um trabalho, por natureza, já precário. A própria precarização do trabalho precário.

O movimento “Treta no Trampo” está convocando entregadores de aplicativos para uma paralisação no próximo dia primeiro de julho. Pedem que legisladores definam os parâmetros dessa relação atualmente imoral, que o Judiciário ponha termo à penúria em curso.

Vale ressaltar que, de modo esporádico, o Judiciário já vem enfrentando questionamentos sobre o tema e, mormente possuir posições indefinidas, não pode se esquivar de decidir pela proteção da dignidade humana do trabalhador. Aqueles que possuem consciência de que a exploração do homem pelo homem, se não deve ser evitada de vez, deve ser, pelo menos, mitigada, têm o dever ético de apoiar as reivindicações dos entregadores de aplicativo. 

No dia primeiro de julho, nenhum pedido por aplicativo de entrega deve ser realizado, nenhum centavo deve ser concedido a empresas que não se condoem de tratar pessoas como objetos. Todo apoio aos entregadores.

Marcelo Uchôa é professor doutor de Direito da Universidade de Fortaleza (UNIFOR) e advogado membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) - Núcleo do Ceará.

__________

Publicado no Brasil de Fato