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Opinião

O povo contra as elites

Chico Cavalcante*

O ativismo antiestablishment surgiu no calor da revolução industrial do século XIX. Simbolizava a resistência contra as elites econômicas e políticas, marcando um período de intensa luta de classes. Essa atitude política animou o surgimento de movimentos como o anarquismo e o socialismo, críticos ao capitalismo industrial e suas inerentes desigualdades sociais, propondo uma reestruturação das relações de poder em busca de uma sociedade pautada pela igualdade e justiça. Ao longo do tempo, essas ideias formaram a espinha dorsal da agenda progressista, visando a transformação social por meio da contestação das estruturas de poder e do monopólio privado das riquezas.

Contudo, na virada do século XX, presenciamos uma apropriação da retórica antiestablishment pela direita política, que assim angariou apoio popular entre eleitores insatisfeitos com o status quo, animando discursos que, embora aparentemente desafiem as elites, visam, na realidade, perpetuar as estruturas de poder existentes, desde que controladas por novos líderes. A emergência do neoliberalismo exacerbou esse fenômeno, enfraquecendo organizações trabalhistas e diluindo a radicalidade das lideranças de classe, muitas das quais foram absorvidas pelas estruturas estatais. Como resultado, a crise econômica acentuada pelas políticas neoliberais minou a confiança nas instituições tradicionais e agravou a exclusão social, ao mesmo tempo em que a esquerda se distanciava de sua base, adotando um discurso cada vez mais complexo e distante dos confrontos diretos entre explorados e exploradores. A luta de classe, síntese necessária da realidade social capitalista, deu lugar a uma plêiade de identitarismos, esgarçando os recursos programáticos e distanciando a esquerda da base social que animou sua origem e crescimento e da ambição por uma transformação estrutural da sociedade, que pressupunha um tipo de horizontalidade dentro dos processos de produção e o empoderamento popular na forma de alguma democracia direta.

A dianteira tomada pela direita na adoção da bandeira antiestablishment impõe à esquerda o desafio de se reconectar com suas raízes. A realidade do trabalho precário e a diminuição do número de operários industriais não diminuem a relevância da classe trabalhadora, que ainda forma a maioria da população. Reconhecer isso implica reafirmar o compromisso com o combate à desigualdade e a exclusão, retomando a luta contra a exploração capitalista com propostas concretas e transformadoras. Ouvir os trabalhadores, fortalecer a organização de base e abrir espaço para novas lideranças são passos essenciais nesse processo.

Além disso, a luta contra a corrupção e a concentração de poder devem voltar à retórica de esquerda, que não pode se omitir do combate firme e corajosa contra essas práticas.

Outro aspecto crucial nesse resgate é a politização da questão ambiental. A preocupação com o meio ambiente e o impacto das mudanças climáticas é uma prioridade para a maioria da população, que apoia a proteção ambiental mesmo que isso implique em menor crescimento econômico. A esquerda deve liderar o debate sobre a reorganização dos modos de produção e consumo sob uma lógica pós-capitalista, defendendo a transição para um socialismo ecológico que priorize as necessidades da população em primeiro lugar.

Essa postura pode não apenas reconquistar a confiança das massas, mas também reforçar a imagem da esquerda como real defensora dos interesses coletivos. A mobilização popular contínua e o diálogo direto com os cidadãos são fundamentais para reconstruir a legitimidade e o apoio de amplas massas à esquerda.

A autocrítica sobre como a esquerda perdeu a bandeira antiestablishment para a direita pode enriquecer o debate, oferecendo aos progressistas a oportunidade de reafirmar seu compromisso com a transformação social e a defesa dos interesses da classe trabalhadora. Retomar a bandeira do povo contra as elites representa não apenas um desafio político, mas uma nova chance de fortalecer a luta por uma sociedade mais justa, igualitária e radicalmente democrática.

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*Chico Cavalcante é jornalista, consultor político e autor, dentre outras obras, do "Manual do Marketing de Guerrilha" (Senac-SP).