Luiz Inácio Lula da Silva (PT) venceu neste domingo (30/10) o segundo turno da eleição presidencial e impôs a primeira grande derrota para a extrema direita brasileira em quatro anos.
Com 99,99% das urnas apuradas, Lula havia conquistado 50,90% dos votos, contra 49,10% do atual presidente de extrema direita Jair Bolsonaro (PL).
A margem de Lula sobre Bolsonaro foi de cerca de 1,8 ponto, ou pouco mais de dois milhões de votos, evidenciando uma profunda divisão na sociedade brasileira e uma reação quase bem-sucedida do bolsonarismo no segundo turno. Na primeira rodada, Lula havia ficado à frente por 6 milhões de votos.
O resultado deste segundo turno foi ainda mais apertado que o de 2014, quando Dilma Rousseff (PT) venceu Aécio Neves (PSDB) por uma diferença de apenas 3,2 pontos, naquela que havia sido até este domingo a eleição mais acirrada desde a redemocratização. Pela primeira vez, o número de pessoas que votaram no segundo turno foi maior do que no primeira rodada.
Em seu primeiro discurso após a vitória, Lula que o resultado mostrou que “a maioria do povo brasileiro deixou bem claro que deseja mais, não menos democracia”. “A ninguém interessa viver em um país dividido e em eterno estado de guerra. É hora de baixar as armas que jamais deveriam ter sido empunhadas. Não faltará amor neste país. O Brasil tem jeito”.
Ao conquistar um terceiro mandato presidencial, Lula não apenas marca sua volta ao poder mais de uma década após deixar o Planalto, mas demonstra uma reação bem-sucedida de uma parcela das forças políticas tradicionais do país frente ao crescimento da extrema direita desde 2018.
Com a vitória de Lula, o Brasil passa a seguir a tendência de vários países sul-americanos que se voltaram recentemente à esquerda, como o Chile e a Colômbia. Mas o resultado deste domingo também pode ser comparado às últimas eleições nos Estados Unidos e na França, que também resultaram numa vitória de políticos tradicionais sobre rivais de extrema direita, pelo menos no comando do Executivo.
Nos dias que precederam o segundo turno, Lula disse repetidamente que pretende “pacificar” o Brasil, que enfrenta uma persistente crise econômica, política e institucional há quase dez anos.
No entanto, pairam dúvidas sobre como o governo Bolsonaro vai se comportar após a derrota e se o fim do segundo turno vai marcar a abertura de uma nova fase de turbulência. Na noite de domingo, o presidente evitou comentar o resultado e permaneceu isolado.
Nos últimos anos, Bolsonaro sistematicamente tentou minar a confiança no sistema eleitoral, antecipando um discurso infundado de “fraude” nas urnas.
Ele também sinalizou diversas vezes que pode não reconhecer uma vitória de Lula, levantando o temor de uma ofensiva semelhante àquela lançada pelo seu ídolo, o ex-presidente americano Donald Trump, que em janeiro de 2021 instigou a invasão da sede do Congresso americano por uma turba de apoiadores radicais – tudo com o objetivo de tentar impedir a oficialização da sua derrota e a vitória do democrata Joe Biden.
De acordo com pesquisa Genial/Quaest, 62% dos eleitores de Bolsonaro dizem que é “improvável” aceitar a derrota. O número é 22 pontos percentuais acima do que registrado quando a mesma pergunta foi feita em 21 de setembro.
Mesmo neste domingo, o bolsonarismo recorreu a táticas ilegais para influenciar a votação, usando a Polícia Rodoviária Federal para dificultar o tráfego em estradas e a circulação de eleitores – sobretudo em redutos eleitorais de Lula.
O pleito presidência de 2022 também foi também o mais tenso desde a redemocratização, com sucessivos episódios de violência política e assédio eleitoral.
Oficialmente, a campanha presidencial teve início em 15 de agosto, mas o pontapé inicial da disputa foi mesmo dado em março de 2021, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) anulou todas as sentenças contra o ex-presidente Lula, devolvendo ao petista seus direitos políticos – e consequentemente o cacifando para concorrer novamente à Presidência, ao contrário do que ocorreu em 2018, quando ele foi barrado.
Desde então, Lula foi o único candidato que demonstrou nas pesquisas capacidade de frear o bolsonarismo, diante do fracasso de uma série de postulantes que tentaram se posicionar como “uma terceira via”. Ao longo de um ano, nenhum candidato fora de Lula e Bolsonaro conseguiu romper a barreira dos dez pontos nas pesquisas.
Durante a campanha, Lula apostou sistematicamente na nostalgia pelos seus bem-sucedidos governos entre 2003 e 2010, falando de um Brasil que as disputas podiam até ser acirradas, mas que nunca eram tão violentas.
Mantendo sua antiga popularidade entre as camadas mais pobres, o ex-presidente costurou ainda uma “frente ampla” de centro, arregimentando para sua campanha a terceira colocada na disputa presidencial do primeiro turno, a senadora Simone Tebet (MDB), além de conquistar o apoio do PDT de Ciro Gomes (o candidato derrotado não se engajou na campanha petista). Lula ainda recebeu declarações de apoio dos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e José Sarney.
Em contraste com 2018, quando seu substituto Fernando Haddad penou para conquistar apoios, Lula conseguiu votos até mesmo de antigos críticos ou adversários do PT, como o ex-ministro do STF Joaquim Barbosa (relator do julgamento do Mensalão) e o jurista Miguel Reale Jr., um dos autores do pedido de impeachment de Dilma Rousseff.
Nem todos os nomes optaram por Lula pelo programa do petista ou por sua trajetória pessoal, mas sim por rejeição ao bolsonarismo. O ex-ministro do STF Joaquim Barbosa, por exemplo, afirmou durante a campanha que o extremista de direita Bolsonaro não estava “à altura| e não tinha dignidade para ocupar a Presidência.
Diversos chefes de Estado ou governo do exterior não esconderam sua preferência por Lula. No ano passado, ainda na posição de pré-candidato, o petista foi recebido com honras de chefes de estado pelo presidente francês Emmanuel Macron e se encontrou com Olaf Scholz, quando o atual chanceler federal da Alemanha ainda costurava a montagem do seu governo. Durante a campanha, Lula recebeu declarações de apoio dos primeiros-ministros da Espanha e Portugal.
Após quase quatro anos de um governo que isolou o Brasil internacionalmente, e que foi marcado por uma gestão desastrosa da pandemia de covid-19 e várias crises institucionais, Bolsonaro ainda exibiu força na reta final da eleição, especialmente na passagem do primeiro para o segundo turno, quando obteve uma votação maior do que os institutos de pesquisa haviam captado.
No entanto, Lula, um veterano com mais de quatro décadas de carreira política, foi o candidato que soube melhor explorar a rejeição ao atual presidente. Segundo uma pesquisa do instituto Atlas divulgada na semana que antecedeu o segundo turno, o “antibolsonarismo” se tornou a principal tendência política do país, superando o antipetismo entre a maioria do eleitorado.
Para Lula, a vitória também é um triunfo pessoal. O ex-presidente voltará ao poder pouco mais de quatro depois de ser barrado na disputa ao Planalto.
Em 2018, quando foi preso e teve sua candidatura à Presidência indeferida, Lula atingiu um dos pontos mais baixos da sua longa carreira política. Seu substituto na disputa, Fernando Haddad, acabou sendo derrotado por Bolsonaro e o eleitorado que costumava votar no PT encolheu.
Mas, depois de passar 580 dias na prisão, Lula não só obteve anulação das suas condenações como se cacifou como o favorito para vencer à Presidência em 2022. Raras vezes um político brasileiro experimentou uma volta por cima tão dramática.
Em um comício em Curitiba no mês de setembro, a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, classificou a volta por cima de Lula como uma “redenção”. Lula voltou à antiga “capital da Lava Jato” e foi recebido por uma multidão de apoiadores.
Ciente que não poderia vencer apenas com a esquerda ou usando um tom revanchista após todos os percalços sofridos pelo PT nos últimos anos, Lula deixou claro que pretende governar com esse amplo arco de alianças. O carro-chefe da estratégia foi a escolha do seu vice, o ex-rival Geraldo Alckmin, de centro-direita. Na reta final da campanha, Lula afirmou que seu governo “Não será um governo do PT”.
Lula terá 77 anos quando assumir a Presidência pela terceira vez. Será o presidente mais velho a tomar posse na história do país, superando o recorde anterior de Michel Temer. Como terá 81 anos quando completar o mandato, Lula já avisou que pretende ser “um presidente de um mandato só”.
Mas a idade não é o único desafio do petista. Lula vai assumir um país castigado por quase uma década de tensões políticas e crise econômica.
A extrema direita que encontrou sua personificação em Bolsonaro, apesar de derrotada na Presidência, criou raízes na paisagem política brasileira e deve ser uma força barulhenta de oposição. A composição do Congresso eleito em outubro, que fortaleceu ainda mais os partidos do “Centrão”, também impõe desafios à governabilidade.
Em suas mais de três décadas de carreira política, Bolsonaro sempre se gabou de nunca ter perdido uma eleição. Agora, ele conquistou uma marca inédita: a de primeiro presidente no poder a perder a reeleição desde que o mecanismo começou a ser aplicado em 1998.
Lula e Bolsonaro lideraram campanhas que não só contrastaram em conteúdo e visão de país, como em estratégia. Bolsonaro apostou num discurso de tribalismo, reforçando o fanatismo do seu grupo político com mentiras e medo. A receita havia sido bem-sucedida em 2018, mas quatro anos depois não foi suficiente.
Apesar de estar há quase quatro anos no poder e contar com uma blindagem proporcionada por uma atuação apagada da Procuradoria-geral da República (PGR), que evitou investigar escândalos do governo, além de contar com um Congresso dócil, Bolsonaro também tentou reciclar nesta campanha a imagem de “outsider” que usou na campanha de 2018. “O sistema todo está contra mim, disse Bolsonaro no último debate.
Seus quase quatro anos de governo foram marcados por problemas econômicos e sanitários, isolamento internacional, aumento da pobreza e sucessivas crises políticas.
Apesar de tudo isso, o presidente ainda chegou na campanha com uma parcela significativa de apoiadores ferrenhos, ainda fiéis à sua agenda moral, especialmente entre o eleitorado evangélico e setores mais ricos.
No entanto, o resultado final mostrou que ele perdeu boa parte dos eleitores de centro que há quatro anos haviam aderido de maneira decisiva à sua candidatura em nome do antipetismo.
Para tentar se manter na Presidência, Bolsonaro ainda tentou se valer de uma estratégia de “vale-tudo”, abusando de medidas eleitoreiras, como ampliação de gastos sociais e uso da máquina pública. Empresários alinhados com o governo tentaram intimidar funcionários a votarem no presidente. Prefeitos aliados e governadores aliados tentaram dificultar o transporte gratuito no dia do pleito.
Mesmo sem o registro de incidentes significativos de violência, o pleito deste domingo teve momentos de tensão, com o governo Bolsonaro exercendo pressão ilegal para dificultar a votação em redutos eleitorais de Lula.
Descumprindo uma ordem do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a Polícia Rodoviária Federal (PRF) realizou mais de 500 operações contra veículos que faziam transporte público de eleitores. A maioria das operações ocorreu na região Nordeste, mesmo com a determinação do TSE publicada na véspera que havia proibido esse tipo de blitz.
No sábado, o diretor-geral da PRF, Silvinei Vasques, chegou a publicar em suas redes sociais uma imagem pedindo votos para Bolsonaro. A insistência de Vasques em descumprir as ordens do TSE levaram a coligação do ex-presidente Lula e pedir a prisão imediata do diretor-geral, mas o pedido ainda não havia sido atendido até o final da tarde.
Nada disso, no entanto, foi suficiente para garantir uma virada no pleito. No segundo turno, Bolsonaro viu sua campanha ficar na defensiva após sucessivos episódios negativos envolvendo tanto a figura do presidente quanto aliados. Adversários exploraram falas do presidente que o associavam à pedofilia e até canibalismo. Dois aliados do presidente, o ex-deputado Roberto Jefferson e a deputada Carla Zambelli, protagonizaram episódios de violência explícita com armas de fogo. O ministro da Economia, Paulo Guedes, foi alvo de críticas ao propor mudanças na correção do salário mínimo.
Apesar da derrota, Bolsonaro ainda demonstrou que a “onda conservadora” que varreu as eleições de 2018 não arrefeceu nas disputas para o Legislativo. Em 2022, a extrema direita fincou raízes na Câmara e no Senado e Bolsonaro explicitou que ainda tem influência decisiva como cabo eleitoral.
No primeiro turno, bolsonaristas conquistaram várias vagas ao Senado e apareceram entre os deputados federais mais votados de estados como São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Paraná. Em São Paulo, dos cinco deputados federais mais votados, quatro são “bolsonaristas puros”. Em Minas Gerais, o bolsonarismo garantiu a maior votação do país para um deputado federal com Nikolas Ferreira (PL), que recebeu 1,4 milhão de votos.
Mas essas vitórias no Legislativo não devem ser suficientes para consolar a perda da Presidência entre os bolsonaristas. O período pós-segundo turno deve ser dominado não apenas por eventuais anúncios sobre a montagem do governo Lula, mas sobre qual será a estratégia de Bolsonaro.
Ainda em 2018, antes de tomar posse, Bolsonaro já vinha desenhado uma estratégia de contestar o resultado das urnas, ao afirmar que só não havia ganhado no primeiro turno daquele ano por causa de supostas “fraudes” nas urnas.
Posteriormente, as maquinações se tornaram mais amplas e ele chegou a incentivar as Forças Armadas a participarem da fiscalização processo eleitoral, levantando temores de interferência. O presidente também afirmou pouco antes do primeiro turno de maneira ameaçadora que “se não ganhasse no primeiro turno” com “60%” dos votos, algo de “anormal” teria acontecido “dentro do TSE”.
Mas, apesar de ter condicionado sua base radical a duvidar dos números de pesquisas e da segurança das urnas eletrônicas, o presidente tem encontrado por enquanto pouco apoio na classe política tradicional para suas falas golpistas. Seus principais aliados do Centrão na Câmara e no Senado vêm evitando endossar as ofensivas do presidente contra o sistema eleitoral.
Governos estrangeiros, incluindo o dos EUA, também avisaram antes do segundo turno que têm confiança no sistema eleitoral brasileiro e que vão reconhecer sem demora o vencedor da eleição.
Em setembro, parlamentares europeus enviaram uma carta à presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, e ao chefe da diplomacia da União Europeia (UE), Josep Borrell, pedindo que o bloco pressione o governo brasileiro a respeitar a Constituição.
Em julho, Bolsonaro chegou a reunir dezenas de embaixadores em Brasília para lançar ataques às urnas eletrônicas e ao STF, mas o encontro só explicitou ainda mais o isolamento internacional do presidente.
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DW
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