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Aliado de Lira vendeu kit robótica 420% mais caro do que declarou ter pago

Empresa que obteve verbas do governo Bolsonaro pagou R$ 2.700 por produto vendido posteriormente por R$ 14 mil

Arthur Lira (PP-AL), de camisa branca, à direita na mesa, e aliados, como o vereador João Catunda (à direita de Lira) e o pai, Edmundo Catunda (primeiro à esquerda), dono da empresa Megalic, que vende kits de robótica pra prefeiturasA empresa de Maceió contratada para fornecer kits de robótica para prefeituras, por meio de recursos de emendas liberados pelo governo Jair Bolsonaro (PL), vendeu os equipamentos ao poder público com uma diferença de 420% em relação ao preço que declarou ter pago em ao menos uma das compras que fez do produto.

Enquanto municípios desembolsaram R$ 14 mil por cada robô educacional, nota fiscal obtida pela Folha mostra que a Megalic adquiriu unidades por R$ 2.700 de um fornecedor do interior de São Paulo.

Os donos da empresa alagoana são Roberta Lins Costa Melo e Edmundo Catunda, pai do vereador de Maceió João Catunda (de saída do PSD), aliado do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). O deputado é responsável por controlar em Brasília a distribuição de parte das bilionárias emendas de relator do Orçamento, fonte dos recursos dos kits de robótica.

A Folha revelou que sete cidades alagoanas receberam neste ano R$ 26 milhões de dinheiro federal para robótica, apesar de sofrerem com uma série de deficiências de infraestrutura básica, incluindo falta de computadores, internet e água encanada. Ao somar outros dois municípios pernambucanos que também contrataram a Megalic, o valor chega a R$ 31 milhões.

Esse montante representa 79% do total gasto autorizado pelo governo Jair Bolsonaro para todo o país em 2021 na rubrica para compra de equipamentos e mobiliário, na qual se inclui o gasto com kits de robótica. Os recursos, liberados em velocidade incomum, são gerenciados pelo FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação), órgão do MEC (Ministério da Educação) dominado pelo centrão.

A empresa garantiu contratos com prefeituras a partir de diferentes processos de licitação cujos teores são praticamente iguais, com minúcias que praticamente reproduzem a composição dos robôs fornecidos pela Megalic.

Os R$ 14 mil de cada kit representam valor muito superior ao praticado no mercado, inclusive de produtos de ponta de nível internacional. Apesar de fechar contratos milionários, a empresa é intermediária, não produz kits de robótica.

A Folha teve acesso a uma nota fiscal emitida em 28 de setembro de 2021 em que a Megalic compra 370 kits, com custo unitário de R$ 2.700, da empresa Pete, de São Carlos. O valor total dessa compra foi de R$ 999 mil.

Nota fiscal em que a Megalic compra 370 kits de robótica por preço unitário de R$ 2.700 da empresa Pete, de São Paulo; a Megalic vendeu o kit a prefeituras por R$ 14 milArthur Lira diz não ter envolvimento com contratação de empresas pelos municípios e nega ter solicitado aceleração de liberações. "Não compete ao presidente da Câmara avaliar qualquer compra ou licitação de quaisquer outros entes federativos. Isso deve ser feito pelos órgãos de controle competentes."

A Megalic não quis se manifestar. A fornecedora Pete também não respondeu às tentativas de contato da reportagem. MEC e FNDE têm sido procurados sobre o tema desde quarta-feira (6), mas também ficaram em silêncio.

Em manifestações anteriores, a Megalic e o vereador negaram qualquer irregularidade.

EMPRESA JÁ FATUROU R$ 54 MILHÕES NESTE ANO

Somente para os seis municípios de Alagoas e dois de Pernambuco que receberam dinheiro do FNDE neste ano foram negociados 1.960 kits de robótica.

Informações obtidas pela reportagem mostram que a Megalic já faturou em 2022 o total de R$ 54 milhões a partir de depósitos de prefeituras para kits de robótica, enquanto só gastou R$ 6,7 milhões. Em 2021, essa diferença foi entre R$ 15 milhões em recebimentos e R$ 2,7 milhões em gastos.

Esse volume recebido em 2022 pela Megalic refere-se a pagamentos feitos pelas prefeituras de União dos Palmares, Canapi, Barra de Santo Antonio, Santana do Mundaú, Branquinha, Maravilha, Flexeiras, Bom Jardim e Carnaubeira da Penha. Os dois últimos são de Pernambuco e os outros, de Alagoas, e todos receberam pagamentos do FNDE neste ano.

Além destes, também pagaram à Megalic neste ano os municípios de João, Santo Antão, Serra Talhada (de Pernambuco), Ouro Branco (AL) e Dourados (MS). Essas prefeituras não receberam dinheiro federal para este fim.

O maior valor recebido pela empresa para kits de robótica neste ano veio de Dourados, no total de R$ 17 milhões. A prefeitura é gerida por Alan Guedes, que é do PP, mesmo partido de Lira.

Dourados aderiu a uma ata de registro do município de Delmiro Gouveia (AL), que colocou a Megalic como fornecedora. Em nota, a prefeitura afirmou que planejou a aquisição de robótica para seus alunos para alcançar a exigência constitucional de alocar 25% das receitas em educação.

"A adesão da ata da ocasião se deu porque as especificações técnicas e pedagógicas do documento atendiam fielmente o que estava proposto no planejamento da Prefeitura de Dourados, bem como baseado nas indicações técnicas do FNDE. Nota-se que o próprio fundo nacional não possuía ata vigente na ocasião", diz nota.

O Ministério Público em Dourados já tem uma investigação sobre o caso, mas não se manifestou, além das outras prefeituras citadas.

A Megalic venceu ao menos cinco licitações ou atas de registros de preços em Alagoas. Todos com a previsão de fornecimento de material didático e cursos de capacitação para professores que incham os valores dos contratos.

Das sete cidades do estado beneficiadas, duas aderiram a uma ata realizada pelo consórcio Conagreste, presidido por Marlan Ferreira, prefeito de Limoeiro de Anadia (AL) e aliado de Lira. Os outros aderiram à ata realizada por Canapi, também da base do parlamentar.

Entre os componentes exigidos no edital, por exemplo, constam dois sensores de luminosidade, um de temperatura, um de som, entre outros. Tais características coincidem exatamente com kit de robótica produzido pela Pete, e revendido pela Megalic, como consta em memoriais de composição dos produtos elaborados pela empresa.

"Empresas grandes talvez não se adequassem ao padrão exigido. A lista traz características bastante genéricas, sem especificar a qualidade dos componentes, mas quantidades bem específicas, especialmente na parte de atuadores e sensores", avaliou, a pedido da reportagem, o diretor de TI da Secretaria de Educação de Mogi das Cruzes, Pedro Passos.

Segundo ele, entre as empresas de maior porte que ficariam excluídas por não ter condições de satisfazer os pré-requisitos está a Lego, marca dinamarquesa referência de mercado quando o assunto é kit de robótica.

"Um kit da Lego não vem com tal quantidade de sensores, que teriam de ser comprados à parte ou seria preciso fazer um pacote específico para essa licitação compreendendo essas quantidades", disse.

A concorrência da Conagreste, por exemplo, ocorreu em agosto de 2021 e somente a Megalic e uma outra pequena empresa, a Flash, de Minas Gerais, participaram. Assim com a Megalic, a Flash trabalha com o fornecimento de diversos produtos ao setor público.

Ela tinha o melhor preço, com pequena diferença, mas foi inabilitada durante o certame por não conseguir comprovar execução mínima de 30% do volume licitado —e a Megalic assumiu a ata.

A Conagreste não respondeu aos questionamentos da reportagem.

No mesmo mês, o município de Canapi abriu outra concorrência para kits de robótica, em que a Megalic também venceu diante de um edital que trazia as mesmas descrições de produto. A Flash também concorreu, teve a melhor oferta, mas foi mais uma vez inabilitada por não apresentar documentação exigida.

"Tivemos a impressão que as descrições são as mesmas e direcionadas", diz a responsável pela Flash, Lysllie dos Santos. Ela diz não ter relação com a Megalic e trabalhar com robôs de cinco marcas, incluindo a Lego.

Nesta concorrência de Canapi participaram outras duas empresas: a Hyago Henrique Basílio Alves Sistemas ME, de Atalaia (AL), e a Salto para o Futuro Robótica, de Guaratinguetá (SP). De uma família de donos de uma escola na cidade, Hyago Alves disse à Folha que desenvolve robôs e já lecionou robótica, mas só participou desta concorrência.

"Parecia que os caras copiaram os termos de alguma empresa, senti isso. Mas não tenho como afirmar [que houve direcionamento]", disse ele.

Marcelo Barretti, advogado especialista em licitações contratado pela Salto para o Futuro Robótica (nome fantasia Step2 Future), diz que não foi identificada pela empresa qualquer exigência considerada exorbitante.

"Como a robótica é um ramo novo, é muito comum as prefeituras copiarem editais de outros locais ou tentarem trabalhar em cima daqueles que deram certo", disse ele, que negou qualquer vínculo com a empresa do aliado de Lira. A Salto para o Futuro Robótica foi a única fabricante de kits a participar desse certame.

Uma empresa envolvida no certame de Delmiro Gouveia, também realizado em 2021, chegou a entrar com impugnação sob argumento de "evidente direcionamento do objeto licitado". A Ekipsul, do Paraná, apontou ainda similaridades em concorrências que envolvem Rio Largo, Atalaia e São José da Laje (todas de Alagoas).

As condições detalhadas nos editais dos municípios alagoanos destoam das especificações exigidas em certames de outros municípios, como Florianópolis. A cidade catarinense abriu um processo licitatório em dezembro passado para a compra de kits de robótica.

O edital descreve os requisitos técnicos de maneira mais genérica, estabelecendo que os kits "deverão ter motores de diferentes tamanhos, sensores diversos, como sensor de distância e sensor de força, além de bateria recarregável".

O FNDE é controlado pelo centrão —o presidente do fundo, Marcelo Lopes da Ponte, era chefe de gabinete de Ciro Nogueira (PP-PI), ministro da Casa Civil. A secretária de Educação de Flexeiras (AL) confirmou à Folha que Lira colaborou para acelerar as transferências de recursos do MEC.

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Paulo Saldaña / Nathalia Garcia | Folha de S.Paulo