Estudo comprovou influência do garimpo no escurecimento das águas de Alter do ChãoAo ganhar manchetes nacionais este mês, o súbito escurecimento das águas cristalinas no balneário turístico de Alter do Chão (PA) evidenciou uma dura realidade aos moradores do oeste do Pará.
A proliferação do garimpo ilegal poderá afetar de modo irreversível a saúde do rio Tapajós, que, além de garantir renda e alimento, constitui as identidades das populações indígenas, ribeirinhas e extrativistas.
Um diagnóstico químico sobre a origem da lama que invadiu o “Caribe Amazônico”, como é conhecida a vila de Alter do Chão, está sendo realizado no âmbito de um inquérito conduzido pela Polícia Federal (PF).
O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), órgão responsável pelas unidades federais de conservação, e o Ibama também contribuem para as investigações.
Criado em 2009 com o objetivo de proteger os povos da Amazônia contra o impacto de grandes empreendimentos, o Movimento Tapajós Vivo é um dos signatários do manifesto contra o garimpo no Tapajós.
“Não dá para o Ibama e a Polícia Federal ficarem com essa enrolação, pisando em ovos, dizerem que estão pesquisando quais são as causas da turbidez do rio”, diz o padre Edilberto Sena, integrante da organização.
Para Sena, o empoderamento dos garimpeiros é consequência da negligência do poder público. Ele defende a retirada imediata deles pelas forças federais de fiscalização.
“As autoridades não querem enfrentar os garimpos, que estão enriquecendo poucas pessoas e destruindo um rio de água limpa, pura e sadia e onde hoje não está se podendo tomar banho nem beber água”, denuncia o ativista.
Área de garimpo na região do rio Cabitutu, que deságua no TapajósPara ele, a culpa pela mudança de paisagem no Tapajós é do garimpo ilegal, não de fenômenos naturais relacionados à cheia do rio Amazonas. “Não temos dúvidas. Quem mora nessa região há muitos anos sabe [que o garimpo é o responsável pela poluição do rio Tapajós]”.
“O garimpo tem sido um monstro para nós. Alter do Chão não estava barrenta como está hoje. Em janeiro, fiz uma viagem para lá e me assustei completamente. Cheguei a chorar, porque é muito triste”.
O lamento é de uma indígena que carrega o rio no próprio nome, a jornalista Ayla Tapajó. Moradora de Santarém, ela vem da comunidade Vila de Curi, localizada no rio Arapiuns, que deságua no Tapajós.
“O Tapajós era azul e agora deixou de ser. Isso tem nos assustado cada vez mais. As pessoas estão dizendo que, se o rio está assim dessa cor, com muito sedimento, então possivelmente o peixe também está contaminado”, relata.
O mercúrio utilizado na obtenção do ouro envenena os peixes, que servem de base da alimentação dos habitantes da floresta e das cidades.
A procura por ouro em terra firme promove o desmatamento da floresta. Depois, é preciso escavar o solo em busca de substâncias valiosas. O metal nobre é então reservado, e a terra restante — chamada de rejeito — é devolvida para dentro do rio, contaminada por mercúrio.
Ainda não há estudos atestando a presença da substância tóxica na fauna aquática da região. Uma pesquisa realizada pela Fiocruz e pela a WWF-Brasil, porém, já comprovou a contaminação de 100% da população indígena Munduruku, que vive às margens do Tapajós.
Movimentos sociais, associações e o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Santarém divulgaram um manifesto pedindo a expulsão dos garimpeiros que atuam nos afluentes do Tapajós.
"Como esconder que cerca de 3 mil garimpos estão funcionando diariamente em barrancos e leitos dos rios, despejando poluição dentro do rio?", questiona a carta assinada por cinco organizações populares.
Habituada a circular pelas comunidades, Ayla relata a conversa com um ribeirinho que vive há 60 anos à beira do Tapajós, na comunidade de Jamaraquá. Depois de uma vida se sustentando com pesca, caça, extrativismo e turismo, o homem não tem perspectivas boas para o futuro.
“Ele falou que estava se lamentando muito, que a ganância do homem tinha destruído o rio. E que ele estava extremamente preocupado com o sustento da família dele. Quem vai querer tomar banho na água contaminada? Como nós vamos sobreviver?”, reproduz a jornalista.
O senso de urgência de integrantes das comunidades tradicionais foi confirmado por imagens de satélite analisadas pelo MapBiomas, projeto que reúne universidades, ONGs e empresas de tecnologia.
A área explorada pela mineração ilegal mais do que triplicou desde 2010, saltando de 214 para 683 quilômetros quadrados uma década depois. Em 2020, o estrago detectado foi o maior dos 36 anos da série histórica.
O MapBiomas aponta que o garimpo, presente nos afluentes do Tapajós desde a década de 1970, tem se multiplicado e atualmente atinge uma área do tamanho de Porto Alegre (RS). As atividades predatórias estão concentradas em mais de dez cursos d’água que deságuam no rio Tapajós.
A análise identificou duas potenciais fontes de sedimento que vêm tornando as águas mais turvas. A primeira delas é a mineração ilegal, conforme aponta César Diniz, coordenador técnico do mapeamento da mineração e da zona costeira do MapBiomas.
“É impossível fazer outra interpretação: há influência garimpeira gritante na alteração da cor no curso do médio Tapajós. E claramente ela vai se estender, sem sombra de dúvidas. Essa é a primeira fonte. Ela é humana, ela é clara, ela é gritante”, assegura o doutor em Geologia.
O segundo possível fator de escurecimento das águas é a cheia do Amazonas, um rio que carrega sedimentos naturalmente. Como é comum na estação chuvosa, a lama pode ter sido transferida para o Tapajós, nos pontos de contato entre os dois cursos d’água.
“Há uma dificuldade de se interpretar se essa mancha é exclusivamente da subida do rio Amazonas, se é exclusivamente garimpeira ou se é uma mistura das duas coisas. A única forma de precisar isso é fazer a análise química da água”, explica Diniz.
“Mas é evidente que mudanças na coloração das águas do Tapajós e de sua foz estão se tornando cada vez mais frequentes, mais intensas e coincidem com expressivo avanço da atividades garimpeira na região", diz a nota técnica elaborada por Diniz e outros sete pesquisadores.
Embora o estudo do MapBiomas tenha contribuído para abrir os olhos da população, Ayla Tapajós observa que ainda há “negacionistas” que insistem na tese do fenômeno natural. A maioria, segundo a jornalista, beneficia-se economicamente da atividade garimpeira.
“Eu sempre falava que as pessoas só iriam acreditar quando elas vissem de perto. E infelizmente isso ocorreu. O Tapajós mudou de uma forma que eu acho até impossível. Acho quase impossível a gente recuperar o nosso rio”, diz.
Mesmo se as análises químicas não indicarem presença de rejeito garimpeiro em Alter do Chão, o geólogo do MapBiomas diz que é questão de tempo até a lama, envenenada pelo mercúrio, chegar ao Tapajós.
"Se continuar como está, teremos manchas com mais frequência. E eventualmente nem manchas serão mais necessárias. A cor do Tapajós será por completo dominada por sedimento garimpeiro”, prevê Diniz.
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Brasil de Fato
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