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Opinião

'A água, a gasolina e a onipotência narcísica'

“A água, a gasolina e a onipotência narcísica”

Por Úrsula Vidal*

Semana passada comprei uma garrafinha de água de 300ml em um shopping por 5 reais. Claro, fiquei escandalizada e procurei fazer a rastreabilidade do produto. Comparei com o preço do combustível fóssil que é terrivelmente poluente e do qual nosso modo de vida moderno depende - no meu caso, desde a vasilha plástica onde trago meu almoço pro trabalho até a tal mobilidade urbana que nos locomove sobre rodas. Se fosse gasolina, o litro dessa água, numa aritmética simples, seria vendido por quase 15 reais.

A água que matou minha sede não veio de um poço em águas profundas na costa brasileira, não passou por uma refinaria, não atravessou o país de caminhão até chegar à bomba de um posto de combustível na esquina da minha casa. Veio de uma fonte natural privada localizada na região metropolitana de Belém, foi envazada aqui e não percorreu mais de 100 km entre o brotar do chão e a minha goela. Essa mesma água que me substancia em 70% da matéria corpórea e em quase 100% da matéria simbólica

Para a maioria de nós, amazônidas, a fartura é uma imagem idílica que habita nosso inconsciente coletivo. Como se nunca fosse faltar. Mas não é porque ainda tem chuva à beça quase diariamente, de floresta ainda nos restam 80%, o pescado abunda em riqueza de cores e formas entre pele e escama que o bioma não esteja em risco. Só pra continuar no tema do farto e até opulento, são mais de 20 milhões de cabeças, somente no Pará, pastando em áreas ainda pouco produtivas, levando-se em consideração os baixos resultados do setor por hectare ocupado. Sabemos que as técnicas de pasto rotativo exigiriam muito menos boi avançando em territórios de floresta. Aliás, a pecuária já abandonou mais de 20% da terra que desmatou na Amazônia e o valor da carne  - que também passeia pela estratosfera assim como a água, o litro do açaí médio e o quilo da dourada - ainda nos deixa esse péssimo legado ambiental não precificado. Em tempo: sou carnívora (com algum constrangimento) e este não é um artigo de militância vegana.

Voltemos à água. Poucos dias após o episódio do preço indecoroso da garrafinha de 300 ml, maratonei até as 4h da madrugada numa série sul-coreana (como estão fazendo filmes bem, esses coreanos!) chamada “Mar da Tranquilidade”. A trama se passa em um planeta Terra mergulhado em gravíssima crise hídrica, cenário bem semelhante aos que os painéis científicos de mudanças climáticas nos apresentam como futuro próximo, caso o aquecimento global continue no ritmo atual. E onde há escassez, há privilégios. E onde há privilégios cada vez mais agudos, grassam a desigualdade e a pobreza, no caso da série, o racionamento de água compromete a sobrevivência das crianças nascidas vivas. Ao longo da trama, várias questões éticas nos são apresentadas em perspectivas dramáticas que atravessam a luta pela continuidade de nossa espécie.

Foi então que a aridez do cenário distópico se misturou com o azul daquela garrafinha plástica de valor abusivo, me sugando como um redemoinho para o pântano metafísico dos dilemas da experiência humana que, aliás, anda bem miserável. Seria a nossa onipotência narcísica a responsável pela absoluta falta de empatia de um graduado em Harvard que planeja a bolha imobiliária nos Estados Unidos, deixando milhares de famílias sem teto? O que move um sujeito notável em inteligência e invejável em formação acadêmica a acumular o suficiente para ter Iate, casa de praia, cobertura triplex, abdômen sarado, jatinho, testa sem rugas, adega ostentação e dentes mais brancos que um papel chamex? A necessidade de impressionar? Será que não dói nem um tiquinho, em alguma hora do dia, ter tanto a um custo tão alto em dores alheias? Que carência infantil é essa que nos coloca na prateleira do mercado mundial dos desejos, nos descaracterizando como humanos diante do espelho deformador de ética e caráter?

Neste exato momento, enquanto você lê este texto, 60 milhões de pessoas estão amontoadas em abrigos para refugiados espalhados pelo mundo, convivendo com o racionamento de água, comida, teto e futuro. O cenário trágico e perverso do filme coreano é aqui e agora. Não desligue a televisão – quebre os espelhos!

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* Ursula Vidal é jornalista, Secretária de Cultura do Pará e Líder de Realidade Climática do The Climate Reality Project da Fundação Al Gore.