Ministério da Saúde é cobrado por secretarias e entidades científicas após mudança na contagem de mortes e casosNa última semana, o Ministério da Saúde anunciou uma brusca mudança de rota na divulgação dos balanços sobre a pandemia de coronavírus, deixando de informar, desde sexta-feira, o número acumulado de novos casos e mortes pela doença no Brasil, além de alterar o horário de atualização dos números. Neste domingo, soltou um balanço por volta das 20h30 que contabilizava 1.382 óbitos e 12.581 casos em 24 horas, totalizando 37.312 mortes e 685.427 infectados desde o início da contagem. Cerca de uma hora depois, no entanto, o portal de dados oficiais mantido pelo ministério reduziu o número de mortes para 525 (quase três vezes menor que o inicial) e aumentou o de casos confirmados para 18.912, oferecendo ainda mais munição às críticas por falta de transparência do Governo na gestão da pandemia. O movimento do Governo provocou uma reação do Congresso, de entidades científicas e da imprensa, que se mobilizam para ter uma contagem independente que siga as normas de divulgação mantidas até agora e usadas em boa parte do mundo.
Nesta segunda, o ministério explicou que a inconsistência dos números foi provocada por erros de duplicidade, corrigidos na atualização do portal. Pelo menos 25 Estados tiveram dados incluídos de maneira incorreta na primeira versão enviada à imprensa, como Roraima, que em vez dos 145 óbitos computados pela secretaria estadual registrava 762, e Ceará, com quase 2.000 casos confirmados a menos que o apurado juntamente aos municípios do Estado. Com as correções, o total de casos válido no país até o começo desta semana é de 691.758 infectados e 36.455 óbitos pela covid-19. Em nota, a secretaria de saúde de Roraima informa ter subido os números corretos ao sistema. “Quanto aos dados do Ministério da Saúde, que apontavam 726 mortos no Estado de Roraima, o próprio ministério, em suas redes sociais, retificou os dados por erro de digitação.”
Apesar da justificativa oficial, a troca do horário previsto para atualização dos boletins, de 19h para 22h, acontece após intervenção direta do presidente Jair Bolsonaro, que chegou a citar o Jornal Nacional, da Globo, ao justificar os atrasos. “Se ficar pronto às 21h, tudo bem, mas ninguém vai correr às 18h para atender à Globo, a TV funerária”, disse o presidente em entrevista coletiva na última sexta-feira. Oficialmente, segundo a pasta, a mudança no horário de atualização se deve às diferenças de fusos pelo território brasileiro, que estariam contribuindo para atrasos na consolidação de dados repassados por estados e municípios até às 18h.
Após reunião de líderes de hoje (8), ficou decidido que a Comissão Mista Especial de Acompanhamento do Coronavirus trabalhará com os dados estatísticos da pandemia fornecidos pelos estados e DF. É papel do parlamento buscar a transparência em um momento tão difícil para todos.
— Davi Alcolumbre (@davialcolumbre) June 8, 2020
Na nota técnica, o ministério, temporariamente sob o comando do general do Exército, Eduardo Pazuello, afirma que os registros continuarão sendo consolidados à medida que se confirmem novos casos e mortes, ainda que a divulgação passe a ser restrita às ocorrências do dia. E aponta para uma possível mudança de metodologia em um futuro próximo, que prejudicaria, ainda mais, o acompanhamento dos casos. O boletim diário passaria a trazer apenas dados de mortes e casos ocorridos, e não mais registrados, nas últimas 24 horas. “O uso da data de ocorrência (e não da data de registro) auxiliará a se ter um panorama mais realista do que ocorre em nível nacional e favorecerá a predição, criando condições para a adoção de medidas mais adequadas para o enfrentamento da covid-19, nos âmbitos regional e nacional”, aponta o comunicado.
O problema é que o Brasil não tem capacidade técnica de realizar a testagem de forma rápida. E a divulgação das mortes ocorridas nas últimas 24 horas dificilmente captará a realidade do país, pois só entraram na conta aquelas vítimas que estavam hospitalizadas há tempo suficiente para que seus resultados já estivessem prontos no momento do óbito. Não entrariam nesta conta, por exemplo, os casos em que a doença evoluiu rapidamente e a morte aconteceu antes do resultado do teste. Ou os que morreram em casa sem conseguir atendimento e, por isso, não tinham feito o teste antes. Na última quinta-feira, mais de 4.000 óbitos ainda aguardavam resultado dos exames feitos.
Os casos em que o teste chega após o óbito seriam atualizados com atraso. E, sem a divulgação dos dados totais, ficaria difícil acompanhar essa atualização. “Será analisado como trabalhar as curvas logarítmicas sem desconsiderar os totais de casos e óbitos, pois entende-se que um tipo de dado trabalhado não dispensa o outro”, diz o ministério. “Cabe ressaltar que esses dados precisam ser divulgados por especialistas com um esclarecimento adequado, apontando as tendências, sem dar margens a interpretações equivocadas da curva epidemiológica em cada Estado ou região do país.”
A mudança do Governo Federal não conta com respaldo da maioria dos Estados. Em uma live transmitida neste domingo, Geraldo Resende, secretário de saúde do Mato Grosso do Sul, criticou duramente o Ministério da Saúde pela camuflagem de dados consolidados da pandemia. “Não podemos criar uma cortina de fumaça para discutir o que tem sido falha do Ministério da Saúde, sem uma política única no enfrentamento do coronavírus. Só em regimes totalitários, tanto de esquerda quanto de direita, é que se esconde os números de uma pandemia”, afirmou o secretário, que também questionou declarações do empresário Carlos Wizard, que passaria a comandar a Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos.
Ainda no domingo, ele informou que ter deixado o posto de conselheiro informal de Eduardo Pazuello no ministério e disse que foi chamado para assumir a secretaria, mas recusou o convite. “Decidi não aceitar para continuar me dedicando de forma solidária e independente aos trabalhos sociais que iniciei em 2018 em Roraima”, explica o empresário. Ele ainda se desculpou por declarações ao longo da semana passada, em que chegou a afirmar que faria uma espécie de recontagem das vítimas do coronavírus, subestimando a dimensão da pandemia no país. “Peço desculpas por qualquer ato ou declaração de minha autoria que tenha sido interpretada como desrespeito aos familiares das vítimas da covid-19 ou profissionais de saúde que assumiram a nobre missão de salvar vidas.”
Entre os aliados de Bolsonaro, a ordem é desacreditar publicamente os números divulgados por secretarias estaduais com o intuito de acelerar a flexibilização das medidas de isolamento decretadas por governadores e prefeitos. No sábado, pelo Twitter, o ex-ministro da Cidadania, Osmar Terra, voltou a endossar o discurso do presidente, que sugere histeria nos alertas sobre a pandemia, ao dizer que a quarentena é inútil. “Estão querendo criar um pavor infinito? Nunca morreram 1.000 brasileiros num único dia pela covid-19. São óbitos de meses, com registro atrasado, notificados num único dia”, afirmou o médico, recomendando a adoção do cálculo de óbitos em 24 horas e desconsiderando que a imprensa sempre divulga os dados como registrados no dia e não como ocorridos no dia. Em março, Terra havia previsto que a pandemia de coronavírus faria menos vítimas que a de H1N1, ocorrida entre 2009 e 2010. Atualmente, a covid-19 já causou mais de 37.000 óbitos, enquanto a doença conhecida como gripe suína matou 2.100 pessoas.
Seguindo a linha de apoio ao Governo, o vice-presidente da República, Hamilton Mourão, afirmou que a mudança na divulgação dos dados epidemiológicos não tem como objetivo a ocultação de informações sobre a pandemia. O general entende que a nova metodologia pode ser revista em caso de determinação por parte de órgãos fiscalizadores. “Não vejo que o Governo quer esconder os dados. Ele não apresenta os números totais, que basta você somar com o dia anterior”, disse o vice-presidente em entrevista coletiva em Porto Velho. “Se isso não agradar à sociedade como um todo, os organismos de controle existentes irão determinar que o Governo mude a sua fórmula.” No sábado, o Ministério Público Federal (MPF) deu 72 horas para o Ministério da Saúde explicar por que alterou o formato e o horário da divulgação de dados.
Em comunicados emitidos nos últimos dias, entidades médicas e científicas condenaram a nova metodologia de informação do Governo. “Os dados epidemiológicos impactam não somente o conhecimento da evolução da doença no país, mas também no exterior, pois são coletados por instituições como a tradicional universidade Johns Hopkins dos Estados Unidos e o Imperial College, do Reino Unido. É inaceitável a omissão dos dados sobre a pandemia”, expressam em nota conjunta a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Academia Brasileira de Ciências (ABC) e Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). “Repudiamos qualquer omissão ou deturpação de dados relativos à covid-19. A subtração e a manipulação de dados não mudam a realidade.” Desde sábado, o site da universidade Johns Hopkins, referência no monitoramento do coronavírus pelo mundo, exibe dados defasados sobre o contágio no Brasil por causa da alteração do ministério.
Para a Sociedade Brasileira de Infectologia, “é fundamental que em uma pandemia de tamanha magnitude tenhamos os números reais”, salienta a entidade em nota de repúdio. “Somente com informações epidemiológicas confiáveis será possível a avaliação das medidas atuais e o planejamento de ações para combater a propagação do novo coronavírus, que vem causando danos avassaladores no mundo e especialmente no Brasil.” Ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta disse, em uma live mediada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, que militares destacados para o Ministério da Saúde, a exemplo de Pazuello, assumiram uma missão genocida de “sonegar informações e torturar os números”.
Com um ministro interino depois de derrubar dois ex-chefes da pasta em menos de um mês, o Governo observa a elevação de tom nos questionamentos às medidas tomadas na Saúde. Nesta manhã, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, cobrou seriedade do ministério e a divulgação de balanços em horário adequado. “É urgente resgatar a credibilidade das estatísticas. Brincar com a morte é perverso. Ao alterar os números, o Ministério da Saúde tapa o sol com a peneira. Um ministério que tortura números cria um mundo paralelo para não enfrentar a realidade dos fatos”, escreveu o deputado nas redes sociais.
Após reunião com líderes no Congresso, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, anunciou que a Comissão Mista Especial de Acompanhamento do Coronavírus trabalhará com os dados estatísticos da pandemia fornecidos pelos estados. “É papel do parlamento buscar a transparência em um momento tão difícil para todos”, postou o parlamentar. ACM Neto, prefeito de Salvador, foi outro a reforçar publicamente as reivindicações por transparência. “Acho absurdo que o Brasil discuta a divulgação de dados com as mortes que ocorrem todos os dias. Eu faço, toda noite, uma reunião com 33 pessoas do meu núcleo de enfrentamento à covid-19. A gente começa. A gente começa a reunião pela análise dos casos sem saber os números do país. Isso é um crime inaceitável.”
Segue o link para atualização dos dados de #COVID19 https://t.co/2BusyPVHqe #dadostransparentes https://t.co/RizEvR6MnA pic.twitter.com/n8DKXp4Zi5
— Gabbardo (@GabbardoJoao) June 7, 2020
Atualização dos dados Covid19 - Vamos lançar a plataforma hoje. Será atualizada de hora em hora, direto das bases estaduais. pic.twitter.com/bZ94s0CNOp
— Gabbardo (@GabbardoJoao) June 7, 2020
Para contrapor o vaivém de informações do Governo Federal, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) lançou neste domingo um site com dados sobre a pandemia do coronavírus compilados dos registros de cada estado. De acordo com João Gabbardo, que foi secretário executivo do ex-ministro Mandetta e hoje comanda o centro de combate à covid-19 em São Paulo, a plataforma será atualizada de hora em hora. O Conass havia publicado nota repudiando declaração do empresário Carlos Wizard, qualificando a acusação de manipulação de dados como “tentativa autoritária, insensível, desumana e antiética de dar invisibilidade aos mortos pela Covid-19”.
Em resposta à decisão do Governo Bolsonaro de restringir o acesso a dados consolidados sobre a pandemia, os veículos Extra, Folha de S.Paulo, G1, O Estado de S.Paulo, O Globo e UOL decidiram fechar uma parceria colaborativa para coletar informações diretamente dos estados. As equipes das publicações envolvidas vão dividir tarefas e compartilhar dados obtidos a respeito da evolução e o total de óbitos provocados pela covid-19. O balanço diário será fechado e publicado às 20h. Segundo o Ministério da Saúde, está previsto o lançamento ainda esta semana de um novo portal com informações relativas ao coronavírus, de onde desapareceram na última sexta os números compilados da pandemia.
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El País
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