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Poder

Na ONU, o mesmo Bolsonaro de sempre

Em discurso, presidente voltou a mentir e a recorrer a teorias conspiratórias como havia feito em outros encontros na ONU. Mas especialistas apontam que desta vez falas pelo menos evitaram tom de confronto com potências

Presidente usou discurso para se comunicar com sua base e ″vender″ país a investidoresO Jair Bolsonaro que discursou na abertura da 76ª Assembleia-Geral das Nações Unidas, nesta terça-feira (21/09), foi o mesmo de sempre, com referências a teorias de conspiração, informações falsas e ultraconservadorismo. Mas sua fala teve um "leve toque de Itamaraty" na forma, um tom abaixo dos discursos dos dois anos anteriores e com um verniz de "Fórum de Davos" para tentar vender o país a investidores.

Esta é a avaliação de três especialistas em relações internacionais ouvidos pela DW Brasil. Eles ressaltam que o conteúdo do discurso de Bolsonaro manteve a espinha dorsal que guiou a campanha eleitoral do presidente e de seus dois anos e nove meses de governo, com pequenas adaptações para o contexto atual.

Moderado? Longe disso

Felipe Loureiro, professor de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP) avalia que, em comparação com os discursos de Bolsonaro na ONU em 2019 e em 2020, o deste ano teve uma "leve moderação no tom", mas não foi uma fala moderada.

"Logo no início, Bolsonaro fez referência à questão de ter salvado o país do socialismo, aos empréstimos do BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social] ao que ele chamou de países comunistas. Você percebe uma estrutura de salvacionismo emoldurada em teorias de conspiração, meio implícitas, mas que estão presentes ali", afirma.

Para ele, a fala do presidente deste ano dirigiu-se mais à sua base do que fez uma tentativa de "recuperar o que é muito difícil de ser recuperado da imagem internacional do Brasil". "Considero um discurso claramente radical, que fala para a sua base, em tratamento precoce, em livrar o país do socialismo, governar de acordo com a família tradicional, salvar o Brasil de algo que agora supostamente estaria a salvo em razão do governo Bolsonaro", disse.

Dawisson Lopes, professor de relações internacionais da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), tem avaliação semelhante: "Bolsonaro voltou a insistir nos seus principais cavalos de batalha, tratamento precoce para covid, culpar governadores e prefeitos, os indígenas querem se aculturar e explorar o espaço agrícola, a base da civilização é a família. Isso não é o nosso discurso diplomático."

Ele avalia que o discurso do presidente foi "bifronte" e buscou, além de sua base de apoio, incluindo setores religiosos e militares, a atenção de investidores internacionais.

Dedo no Itamaraty na "forma"

O discurso deste ano foi o primeiro de Bolsonaro com o novo chefe do Itamaraty, Carlos França, que substituiu no final de março o ex-chanceler Ernesto Araújo, figura próxima ao ideólogo do presidente e radical Olavo de Carvalho.

Em 2019, Bolsonaro adotou na ONU um tom de confronto similar ao da sua campanha no ano anterior, denunciou a ameaça de um suposto "globalismo" e adotou forte tom religioso, afirmando que "a ideologia invadiu a própria alma humana para dela expulsar Deus". No ano seguinte, o presidente culpou os indígenas e caboclos por incêndios na Amazônia e disse que era necessário combater a "cristofobia".

Havia expectativa sobre se França iria moderar a apresentação de Bolsonaro neste ano. Na avaliação de Lopes, da UFMG, o novo chanceler não teve qualquer impacto na "substância e no conteúdo" do discurso. O que foi um pouco diferente, diz, foi a maneira como algumas questões, especialmente sobre negócios e investimentos, foram formatadas. "Aí acho que tem digitais do Itamaraty e uma contribuição da nossa máquina diplomática, mas é um discurso muito para Fórum de Davos", que tenta "vender" o Brasil para o investidor internacional, diz, diferente do tom usual na ONU.

Pedro Brites, professor de relações internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV), observa que a referência feita por Bolsonaro à pretensão do Brasil a assumir uma vaga permanente no Conselho de Segurança da ONU reflete também um elemento tradicional da política externa brasileira e pode indicar "um maior respeito ao Itamaraty." Ele descarta, porém, grandes mudanças sob o novo chanceler, e menciona que França foi gravado nesta segunda-feira em Nova York fazendo o gesto de arma com a mão, sinal claro de alinhamento a Bolsonaro.

Menos confronto com Europa e Estados Unidos

Brites avalia que, na questão ambiental, Bolsonaro deixou de lado o confronto aberto com outros países e buscou apresentar dados – errados – que supostamente justificariam a imagem de um país que protege seu meio ambiente.

Na Assembleia-Geral de 2019, Bolsonaro vinha de uma troca de farpas com o presidente francês, Emmanuel Macron, em meio ao desmatamento e às queimadas na Amazônia, e disse que "um ou outro país, em vez de ajudar, embarcou nas mentiras da mídia e se portou de forma desrespeitosa e com espírito colonialista". Naquele ano, Bolsonaro também mencionou que Alemanha e França usavam 50% de sua área para agricultura, enquanto o Brasil somente 8%.

"Neste ano não teve uma confrontação tão direta com a França e a Alemanha. Embora a gente saiba que ele trouxe dados imprecisos, ou fazendo recortes que favoreciam a comparação que o governo queria construir", diz Brites.

Bolsonaro disse nesta terça que o desmatamento na Amazônia em agosto havia sido 32% menor que o de um ano anterior, quando os dados mostram um cenário diverso. Em agosto, a Amazônia perdeu área equivalente a cinco vezes o tamanho de Belo Horizonte, o maior índice para o mês em dez anos, e o desmatamento acumulado desde janeiro de 2021 é o pior em uma década, segundo dados do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon).

Brites também observa que a ausência no discurso de críticas ao "globalismo", que foi forte em 2019, é um reflexo da derrota do presidente americano Donald Trump nas eleições do ano passado, que forçou o Brasil a adotar uma postura menos agressiva com a agenda do atual presidente Joe Biden.

"Há uma nova conjuntura com a chegada de Biden, o Brasil está bastante isolado hoje, e tem que se adequar no discurso. Não foi tão confrontacionista com as perspectivas do governo americano", diz.

De novo, defesa do tratamento precoce

O discurso deste ano também repetiu teses de Bolsonaro sobre a pandemia, e a defesa do chamado "tratamento precoce", que não tem eficácia contra a covid-19 e pode agravar o estado de saúde dos pacientes.

O presidente também fez, segundo Loureiro, da USP,  uma "distorção evidente" do papel dos governos estaduais e municipais na pandemia e da decisão do Supremo Tribunal Federal que reconheceu a autonomia desses entes governamentais de também definir regras sobre distanciamento social.

"O fato de ele ter trazido de novo o tratamento precoce repercutiu muito mal. É o Bolsonaro tentando conversar com a sua base", diz Brites, da FGV. "Há uma mudança muito sutil, e não me parece indicação de moderação do governo."

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DW