Qual a lógica que rege o fato de que, em um país em que 54% da população se declare negra, os lugares de poder estejam ocupados em sua quase totalidade por pessoas brancas?
Quais mecanismos ideológicos estão em jogo para assegurar aos brancos a ocupação de posições mais altas na hierarquia social sem que isso seja encarado como privilégio racial?
A partir de tais questões é possível pensar na foto que circulou nesta semana nas redes sociais, publicada pela Ável Investimentos com sua equipe, no terraço de sua sede gaúcha, composta apenas por brancos.
Imaginemos, hipoteticamente, que essas pessoas fossem questionadas: “Como você chegou até aqui?”.
Supõe-se, nessa cena, que a maioria das respostas giraria em torno de asserções como: “Estudei muito”, “Tive uma boa formação e me esforcei”, “Sempre quis trabalhar no mercado financeiro, então lutei muito para isso” –ou seja, de enunciados que remetessem às qualidades individuais de seus/suas emissores/as.
Em outras palavras, na suposição que ora produzimos, pouquíssimas respostas mencionariam o fato de que as pessoas em questão são brancas e que isso facilitou sua inserção nos postos mais altos da carreira profissional brasileira.
Funcionários da Ável Investimentos no terraço da empresa, em Porto Alegre; imagem repercutiu nas redes por toda a equipe ser branca, com poucas mulheres, e aglomerar sem o uso de máscarasDando continuidade ao argumento: e se perguntássemos para o mesmo grupo qual a explicação para que entre todas as pessoas presentes só tivessem brancos, é bem possível —depois de uma intensa discussão nacional sobre racismo– que muitos respondessem que a causa para tal desproporcionalidade seja o racismo estrutural, o legado da escravidão e muitas outras respostas associadas às desigualdades raciais.
Dessa forma, cabe-nos perguntar quais são os discursos e narrativas que sustentam a possibilidade de que ao mesmo tempo em que se reconheça o racismo para justificar as desvantagens que atingem negros e indígenas em nossa sociedade, por outro lado não seja reconhecido que os lugares de prestígio ocupados por brancos/as também estejam associados à pertença racial.
Exatamente por essa discrepância é preciso refletir a forma pela qual a ideologia do mérito e o mito da democracia racial constroem e sustentam o que tenho nomeado como supremacia branca à brasileira.
O ideal de “democracia racial” faz parte do imaginário brasileiro e constrói um senso de identidade nacional a qual os brasileiros, em sua maioria, não abrem mão. É destinado a socializar a ideia de que o Brasil oportuniza igualdade de direitos e oportunidades para os diferentes grupos raciais.
Já a meritocracia tem a função de propagar a ideia de que as pessoas alcançam suas “conquistas” a partir de qualidades individuais ligadas ao esforço. Centrada no individualismo, caracteriza, portanto, o mérito enquanto uma ação individual.
Essa lógica de supremacia branca à brasileira distingue-se de países como Estados Unidos e África do Sul exatamente pelo fato de que não precisa ser anunciada por leis discriminatórias e discursos explícitos de violência, calcados na superioridade branca como encontramos em cenas quase caricatas de neonazistas americanos.
No entanto, é preciso deixar nítido que supremacia branca significa dizer que o poder econômico, o poder politico, o sistema de justiça e os cargos mais altos da hierarquia social de um país estão nas mãos de brancos, enquanto negros e indígenas ocupam os lugares mais baixos da estrutura social, bem como estão locados em subempregos.
Além disso, essa supremacia foi sistematicamente negada pela alegação de que o preconceito no país era algo ligado à classe; no entanto, contrapondo-se a essa lógica, os estudos que isolaram estatisticamente os fatores ligados à classe mostraram que há desigualdades sociais que permanecem e, portanto, só podem ser explicadas quando se introduz o par branco e não branco.
Portanto, tanto a construção ideológica do mito da democracia racial, típico do Brasil, como a ideia de mérito —que se disseminou ainda mais a partir da década de 1980 com o neoliberalismo—, têm constantemente funcionado como retroalimentação à legitimação da supremacia branca, sem que essa precise ser afirmada como tal.
Podemos voltar à cena hipotética citada no início desse texto, na qual perguntaríamos aos/às profissionais da Ável as causas pelas quais não haveria negros naquele ambiente. Entende-se, assim, que só haveria duas formas de responder àquela questão: ou os brancos se acreditam superiores, ou a resposta apontaria para o racismo estrutural e as discriminações diárias para que aquele fosse o resultado.
Quem nega que a maioria dos lugares de poder são ocupados por brancos, devido às vantagens estruturais, só pode estar de fato acreditando na superioridade branca e, portanto, usando a chave racista.
Esse texto foi baseado em um artigo maior produzido com Willamys da Costa Melo que será publicado na “Revista Espaço Acadêmico” em fev. de 2022
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Lia Vainer Schucman - Professora do Departamento de Psicologia da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), é autora dos livros “Entre o Encardido, o Branco e o Branquíssimo: Branquitude, Hierarquia e Poder na Cidade de São Paulo” (Veneta 2020) e “Famílias Interraciais: Tensões entre Cor e Amor” (EDUFBA, 2018) | Folha de São Paulo
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