Só dentro de 100 anos, no longínquo 2121, os brasileiros poderão saber se o então presidente Jair Bolsonaro se vacinou ou não contra a covid-19 em meio à pior crise sanitária do século. Também só dentro de um século a sociedade terá direito a saber quantas vezes seus filhos mais velhos, todos parlamentares e pessoas públicas com um papel ativo no Governo, tiveram acesso ao Palácio do Planalto. Estes sigilos centenários, determinados pela gestão Bolsonaro este ano, têm como base a Lei de Acesso à Informação (LAI). A legislação é considerada um marco no sentido de conferir transparência à gestão pública no Brasil, e é utilizada pela sociedade civil e pela imprensa para ampliar a fiscalização sobre os poderes, garantindo o acesso a documentos e informações de interesse da sociedade. Uma brecha na lei sancionada pela então presidenta Dilma Rousseff em novembro de 2011 tem sido explorada por sucessivos Governos no sentido contrário, com o objetivo de ocultar dados.
O artigo 31 da lei afirma que “o tratamento das informações pessoais deve ser feito de forma transparente e com respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas”. Mais à frente, o texto determina que “as informações pessoais, a que se refere este artigo, relativas à intimidade, vida privada, honra e imagem (...) terão seu acesso restrito, independentemente de classificação de sigilo e pelo prazo máximo de cem anos”. Esse artigo tem sido usado em conjunto com a Lei Geral de Proteção de Dados, que busca resguardar a liberdade e a privacidade de indivíduos, para jogar nas sombras informações sensíveis para o Governo.
O caso mais recente do uso da LAI para negar informações ocorreu no final de julho, quando o Planalto decretou o sigilo centenário sobre dados relativos aos crachás de acesso ao Planalto concedidos para o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) e o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), os filhos 02 e 03 do presidente. A revista Crusoé solicitou, via lei de acesso, informações sobre a emissão e utilização destes cartões, e recebeu como resposta a negativa com base no artigo 31.
A determinação do sigilo por parte do Governo pode esconder outros interesses, para além do desejo de salvaguardar dados pessoais. “Existe um lugar de confronto entre proteção de privacidade e dados pessoais e a transparência de dados que são de interesse público”, afirma Juliana Sakai, diretora de operações da Transparência Brasil. “Eles justificam as negativas dentro dessa possibilidade legal com base no artigo 31 ou na Lei Geral de Proteção de Dados, mas com o objetivo de atender outros princípios. E isso acaba sendo feito de forma cada vez mais abusiva: se o Governo é refratário a passar uma informação, alegará que ela é privada.”
Estas decisões do Governo podem ser revertidas, mas o processo leva tempo e custa dinheiro, explica Sakai. “Cabe fazer uma reclamação à Controladoria-Geral da União, que é a instância revisora dos pedidos. Eles podem designar a formação de uma comissão mista de revisão formada por integrantes de vários órgãos do Governo. Se mesmo assim for mantido o sigilo, cabe a judicialização do caso, o que é difícil e custoso”, afirma. Ela explica ainda que a própria CGU tem “frequentemente dado entendimentos a favor do Governo, ou seja, um órgão que deveria controlar tem agido como advogado da União, tomando decisões claramente políticas”.
O primeiro uso do artigo 31 da LAI por Bolsonaro para negar informações data do final de 2020. Em dezembro do ano passado, a Secretaria de Comunicação da Presidência (Secom) decretou sigilo de cem anos sobre os nomes dos servidores que postam no perfil no Twitter da pasta, segundo revelou o então colunista da revista Época Guilherme Amado. Existia a suspeita de que pessoas ligadas ao chamado gabinete do ódio —supostamente comandado por Carlos Bolsonaro e responsável por espalhar fake news e difamar opositores— estaria usando esse canal oficial da Secretaria buscando distorcer informações.
Pouco tempo depois, em janeiro deste ano, o Governo decretou sigilo centenário sobre o cartão de vacinação do presidente, bem como sobre qualquer informação relativa às doses de imunizante que eventualmente tenham sido aplicadas no mandatário. A negativa foi enviada à revista Época, que havia solicitado as informações. De acordo com o Planalto, esses dados “dizem respeito à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem”. Na linha contrária, vários presidentes ao redor do mundo fizeram questão de publicizar o momento no qual receberam a aplicação da vacina, num esforço de incentivar a população a fazer o mesmo. Até o momento não se sabe se ele recebeu alguma dose: em julho Bolsonaro afirmou que só o faria depois “que o último brasileiro for vacinado” e, mais recentemente, falou que não tomaria vacina não-aceita na Europa, em uma provocação ao governador João Doria, que trouxe a chinesa Coronavac, não-aceita, para o país.
Não são apenas o presidente e seus filhos que se blindaram com o segredo centenário. Os aliados do mandatário também recorrem a esse expediente: em junho deste ano, o Exército determinou sigilo de 100 anos ao processo disciplinar que absolveu o general da ativa e ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello por ter participado de uma manifestação política ao lado do presidente, algo vedado pelo regulamento militar. Não faltavam provas da irregularidade. No ato, que ocorreu no passado 23 de maio, Pazuello subiu em um palanque ao lado do mandatário, onde discursou exaltando Bolsonaro. Pressionado pelo presidente, o comandante do Exército, general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, optou por não aplicar sanção alguma a Pazuello, em uma clara quebra na hierarquia e disciplina na tropa.
Para Julia Rocha, assessora da equipe de Acesso à Informação e Transparência da ONG Artigo 19, está havendo um “abuso” por parte do Governo ao determinar os sigilos. “No caso dos crachás dos filhos do presidente, existem normativas que impõem a publicização de agendas para garantir controle social. Já no caso do Pazuello, trata-se de um procedimento que já foi encerrado com o veredito de absolvição, então nada justifica o não compartilhamento do processo”, afirma. Ela aponta ainda uma tendência de “inversão” na lógica de transparência na gestão Bolsonaro: “O mesmo Governo que tem reforçado a questão do sigilo exige que os cidadãos sejam cada vez mais transparentes, até mesmo com monitoramento, como por exemplo no caso de um dossiê antifascista produzido pelo Ministério da Justiça [e que posteriormente foi considerado ilegal pelo Supremo Tribunal Federal]”.
Um dos primeiros registros do uso da LAI para colocar nas sombras informações públicas foi feito durante o Governo do presidente Michel Temer. Em outubro de 2017 o Gabinete de Segurança Institucional determinou que as informações sobre quem acessava o Palácio do Jaburu, residência do então mandatário, seriam classificadas como “reservadas”. A medida foi tomada após um pedido de informações do jornal O Globo, que questionou o Governo sobre visitas dos empresários Marcelo Odebrecht e Joesley Batista, da JBS, no Jaburu. À época Temer se encontrava em uma situação delicada após ter sido gravado secretamente por Batista durante um encontro no qual supostamente teria sido discutido o pagamento de subornos ao deputado Eduardo Cunha para que o parlamentar, já preso, ficasse em silêncio sobre esquemas de corrupção.
As manobras feitas pelo Planalto com base na LAI e na Lei Geral de Proteção de Dados não são os únicos artifícios do Governo que tentaram reduzir a transparência da gestão pública. Em janeiro de 2019 o vice-presidente Hamilton Mourão assinou um decreto que permitia que chefes de órgãos ligados a ministérios —tais como empresas públicas, autarquias e fundações— recebessem a atribuição de definir segredo de dados. Na prática, mais servidores teriam o poder de vetar acesso a informações. A medida acabou revogada logo depois com a reação da Câmara dos Deputados com um projeto de lei que tornava nulo o decreto.
Por fim, no início da pandemia, o Governo editou a Medida Provisória 928/2020, que suspendeu os prazos de respostas aos pedidos de informação enquanto durasse a crise sanitária para todos os órgãos cujos servidores estivessem em regime de teletrabalho. A medida já perdeu a validade, mas foi muito criticada por reduzir a transparência exatamente num período em que a informação é considerada um ativo para combater a crise.
Diante de tanto sigilo, um precedente judicial pela garantia da transparência se destaca como fonte de esperança para os defensores da LAI. Em 2015, após longa batalha jurídica, o Supremo Tribunal Federal determinou que é legítimo e desejável que a administração pública divulgue o salário dos servidores identificados de forma nominal, algo que vinha sendo questionado na Corte. Em seu voto, o ministro Marco Aurélio Mello afirmou: “Entre o interesse individual e o coletivo, o público, prevalece o coletivo”.
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EL PAÍS
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