Isaquias Queiroz não poderia sair das Olimpíadas de Tóquio com o “pescoço pelado”, como costuma dizer.
Perseguidor declarado de marcas e recordes, o único atleta brasileiro a conquistar três medalhas numa mesma edição dos Jogos, em 2016, chegou à quarta de sua carreira na noite desta sexta-feira (6), sábado no Japão, com o ouro na prova C1 1.000 metros da canoagem velocidade em Tóquio.
Agora, ele se iguala ao número alcançado por Gustavo Borges (natação) e Serginho (vôlei) no ranking histórico de medalhistas brasileiros e só fica atrás dos velejadores Robert Scheidt e Torben Grael, com cinco.
Logo após a vitória, Isaquias, à TV Globo, dedicou a medalha de ouro a "todas as famílias brasileiras, que passaram por muitos desafios ao longo desses anos". "Covid, vários familiares morrendo, falecendo, por causa dessa doença. Dedico muito a cada uma dessas famílias que perderam um ente querido."
O ouro em Tóquio, com tempo de 4min04s408, é o primeiro do canoísta, depois de duas medalhas de prata e uma de bronze nos Jogos do Rio —no Japão, só duas provas permaneceram no programa. Na desta sexta, a segunda colocação ficou com o chinês Liu Hao, e o terceiro lugar, com Sergei Tarnovschi, da Moldávia.
O feito encerra um ciclo em que o atleta de 27 anos ampliou seu currículo de conquistas, viveu como protagonista do esporte olímpico brasileiro após o feito no Rio e também precisou lidar com a perda do seu grande mentor na carreira.
O técnico espanhol Jesús Morlán, que chegou ao Brasil em 2013 e guiou os três pódios da canoagem velocidade do país há cinco anos, morreu em novembro de 2018, aos 52, vítima de um câncer no cérebro.
Honrar a memória do treinador virou mais uma motivação para Isaquias, certamente uma de suas maiores, sempre lembrada por ele em entrevistas e ao ir para a água remar até a exaustão. “Foram cinco anos de trabalho, o Jesús [Morlán] também deu a vida dele, literalmente, pela canoagem e pela gente, então vamos treinar pesado para chegar lá e honrar esse trabalho”, afirmou à Folha em junho.
Agora, ele é treinado por Lauro de Souza, o Pinda, que em 2007 buscou o jovem talento na rodoviária para levá-lo ao seu primeiro Campeonato Brasileiro, em Cascavel (PR). Desde então, além das quatro medalhas olímpicas, foram 12 em campeonatos mundiais.
Em 2019, o baiano de Ubaitaba ganhou pela primeira vez a prova do C1 1.000 m nessa competição, feito que o credenciou a chegar como um dos favoritos ao Japão.
Mesmo em meio à pandemia de Covid-19, a elite da canoagem velocidade, que treina e vive em Lagoa Santa (região metropolitana de Belo Horizonte), conseguiu manter a rotina sem tantos transtornos.
Faltava a Isaquias saber em que nível estava na comparação com os rivais, e as etapas eliminatórias nos Jogos de Tóquio confirmaram que o pódio era uma grande possibilidade. O canoísta não escondia que o objetivo maior era sair do Japão com duas medalhas, preferencialmente de ouro, e voltar ao Brasil com a marca de cinco pódios dos recordistas Torben e Scheidt. Para isso, ele precisaria obter sucesso também no C2 1.000 metros, prova em dupla na qual foi medalhista de prata no Rio com Erlon Souza.
O parceiro daquela conquista, porém, conviveu nos últimos meses com uma lesão persistente no quadril, não se recuperou a tempo e deu lugar na canoa ao novato Jacky Godmann, 22. Na última terça (3), eles chegaram na quarta colocação, atrás das duplas de Cuba, China e Alemanha, e ficaram sem a medalha.
Isaquias chorou, lamentou que a dedicação de ambos não havia se convertido em uma conquista, mas não tinha tempo a perder. Na sexta (6), já estava na água outra vez para disputar as eliminatórias do C1, mais mordido do que nunca, depois de pela primeira vez passar em branco numa prova olímpica.
"Eu fui bem com o Jacky, mas eu tô na raiva, tô com vontade de ganhar. Não quer dizer que vou ganhar, mas vou lutar para isso”, afirmou. A fala refletiu algumas das características que saltam aos olhos em Isaquias, competidor obstinado e sem medo de traçar metas ambiciosas.
Nascido num celeiro de canoístas, o baiano foi descoberto em um projeto social de Ubaitaba em 2005. Esperava se classificar aos Jogos de Londres com 18 anos, o que não aconteceu e quase o levou a desistir do esporte.
No ano seguinte, Jesús chegou ao Brasil contratado pelo COB para mudar a história da canoagem e também do atleta que logo cedo precisou superar duas adversidades de saúde: com 3 anos de idade, teve queimaduras pelo corpo causadas por água fervente e ficou um mês no hospital; aos 10, caiu de uma árvore, sofreu hemorragia interna e teve que tirar um rim.
Nada disso o limitou. Nem mesmo a morte de Jesús, que deixou todos ao seu redor preocupados com a forma como o atleta reagiria e seguiria até Tóquio. “O COB [Comitê Olímpico do Brasil] ficou bem preocupado com a questão do luto, como a gente iria se comportar, se iria pegar muito no psicológico.
Mas o Jesús forjou a gente na dor, e acabamos aprendendo a conviver com o sofrimento da perda mesmo de uma pessoa muito querida como ele”, disse.
A solução para Isaquias sempre foi seguir o lema do espanhol: "Siga remando". É dessa forma que ele escreve a sua história, como fez novamente em Tóquio.
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Folha de São Paulo
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