No sítio da família, Maria de Fátima da Silva contempla com tristeza os pés carregados de maracujá. Sem ter como vender a produção das 450 árvores, a colheita parou, e as frutas estão apodrecendo. "Não tem como armazenar em casa depois que o freezer está cheio. Tem que deixar os maracujás lá nos pés e perder”, conta a agricultora de Senador Guiomardno , Acre.
Uma parte da acerola cultivada foi vendida para a Cooperacre (Cooperativa Central de Comercialização Extrativista do Acre). As frutas fazem parte do estoque, estimado em R$ 500 mil, que pode ser todo desperdiçado nas próximas semanas.
"A gente não sabe até onde vai e o tamanho do impacto”, diz Manoel Monteiro, superintendente da cooperativa, sobre a queda das vendas durante a pandemia.
A maior parte da produção era adquirida por órgãos públicos para a merenda e, com o fechamento das escolas, o alimento ficou sem comprador. Variedades de hortaliças, banana, abacaxi, graviola e castanha que vêm de pequenas propriedades também estão sendo perdidas.
No campo, produtores se preocupam com o cenário. "A gente que mora em zona rural vive do plantio. Planta, entrega e compra alimentos pra gente comer. Sem ter como entregar a produção, fica difícil”, explica Silva. Cerca de 2 mil famílias que trabalham com a Cooperacre estão na mesma situação.
Em todo o país, no campo e na floresta, a pandemia do novo coronavírus vem afetando agricultores familiares e extrativistas, população estimada em 18 milhões. Uma pesquisa feita com 131 negócios comunitários mostrou que 80% dos participantes não têm condições financeiras de manter suas operações depois de junho.
"Em geral, associações e cooperativas que vendem os produtos da agricultura familiar e do extrativismo têm uma certa vulnerabilidade. Tanto que o mercado local, imediato, para a maioria deles, é a principal fonte de demanda. O fechamento das feiras impactou esses negócios imediatamente”, comenta Andrea Azevedo, do Instituto Conexões Sustentáveis, que conduziu o estudo em parceria com com União Nacional das Cooperativas de Agricultura Familiar e Economia Solidária (Unicafes) e Conselho Nacional de Populações Extrativistas (CNS).
É da agricultura familiar que vêm a maior parte dos alimentos que chegam à mesa dos brasileiros. "Ela não é uma agricultura voltada para exportação, mas muito voltada para nosso consumo interno, para produzir alimentos frescos, in natura, que são mais saudáveis”, analisa Valéria Burity, secretária-geral no Brasil da Organização pelo Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas (FIAN, na sigla em inglês). "Por isso é muito importante que a gente possa investir e fortalecer a agricultura familiar”, argumenta.
Na roça de Marcelo Fukunaga, alimentos também estão se perdendo. Ele coordena a Cooperativa Central Vale do Ribeira, no sul do estado de São Paulo e que reúne 1200 famílias que cultivam banana, pupunha, milho, feijão, taioba, limão, entre outros.
"Se o produtor não consegue comercializar seus produtos e escoar, ele não vai conseguir produzir para os próximos anos e nem ter recurso para investir na produção”, diz Fukunaga sobre os impactos a médio prazo. "Se não houver nenhum tipo de apoio de política pública, vamos sofrer de desabastecimento por conta da falta de estímulo para o pequeno produzir”, adiciona.
Em Brasília, onde decisões políticas são tomadas, Antoninho Rovaris, da Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares), busca apoio junto ao governo para minimizar esses efeitos.
"A nossa busca é de condições, através de crédito, de linha de comercialização, de apoio para esses agricultores da sua permanência no meio rural e, consequentemente, da sua melhor condição de vida”, diz Rovaris.
Marcelo Fukunaga, que retornou ao campo no Vale do Ribeira depois de estudar na cidade, teme que outros produtores façam o caminho inverso. "O êxodo rural é um retrocesso na agricultura familiar, é um dos problemas que vêm junto”, diz sobre outros possíveis impactos da pandemia.
Questionado pela DW Brasil, o Ministério da Agricultura nega riscos de desabastecimento. "A ministra Tereza Cristina sempre garantiu que não teríamos problemas de abastecimento. Não tivemos e não teremos”, respondeu por e-mail o secretário de Agricultura Familiar e Cooperativismo, Fernando Schwanke.
A pasta diz acompanhar as dificuldades relatadas pelos agricultores familiares. Em uma semana de funcionamento de um canal específico para registrar demandas desse grupo, o ministério recebeu cerca de 200 chamados com algum tipo de problema de comercialização devido à pandemia.
"Nossa equipe está entendendo os problemas, e, quando possível, direcionando estes produtos para os canais de compras públicas ou privadas. Públicas através dos programas de Aquisição de Alimentos (PAA) e da Alimentação Escolar (PNAE) e privadas por meio de um acordo de cooperação técnica que mantemos com a Associação Brasileira de Supermercados”, detalha Schwanke.
Antes mesmo da chegada do novo coronavírus, porém, cortes em programas públicos eram sentidos por produtores. O PAA, por exemplo, que chegou a comprar R$ 840 milhões da agricultura familiar, investia R$ 130 milhões antes da pandemia. Com a crise, o ministério anunciou R$ 500 milhões adicionais a essa iniciativa.
O PNAE, que tem que gastar no mínimo 30% dos recursos com alimentos da agricultura familiar, destina R$ 900 milhões a esses produtores, afirma o ministério. Em anos anteriores, esse valor chegou a R$ 1,24 bilhão, como em 2017, segundo a agência Senado.
Num parecer técnico, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), vinculado ao Ministério da Economia, manifestou preocupação com a agricultura familiar e sua importância para garantir o abastecimento das cidades. Entre outras recomendações, o órgão sugeriu a transferência de renda emergencial às famílias rurais nesta época em que canais importantes de vendas, como feiras, estão restritos.
A categoria, no entanto, ficou de fora do programa de ajuda emergencial depois do veto do presidente Jair Bolsonaro a um trecho específico que estendia a apoio financeiro a trabalhadores afetados pela pandemia.
A decisão interfere diretamente na vida de pessoas como Maria Nice Machado Aires, que lidera 4.500 mulheres quebradeiras de coco de babaçu, no Maranhão. "A gente não pode sair, não pode trabalhar em mutirão, não pode ir para feira, ou sair vendendo na rua”, conta Aires sobre as dificuldades que vieram junto com as medidas de isolamento para conter o avanço da doença, e que são apoiadas pelas quebradeiras como forma de salvar vidas.
Nas mãos dessas mulheres, o babaçu, coco de uma palmeira, é convertido em óleo, sabão e leite, farinha, carvão, cestos e sustentos de muitas famílias. "Quando a gente não pode trabalhar em grupo, você diminui a sua produção. Está muito difícil. Nós, quebradeiras, não temos nenhuma renda, nenhuma contribuição que possa nos apoiar”, ressalta Aires.
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DW
18/11/2024 | 20:24
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