O presidente Bolsonaro, no dia 22, em BrasíliaDesde que iniciou sua campanha à presidência da República e era chamado de homofóbico, misógino, racista ou defensor de torturadores da ditadura militar, Jair Bolsonaro sempre bradava aos seus críticos: “Me chama de corrupto”! Apesar das revelações da imprensa sobre operações suspeitas envolvendo compra de imóveis e presença de funcionários fantasmas nos gabinetes do clã Bolsonaro desde aquela época, era um escudo que funcionava, especialmente com sua base de apoio. Nesta semana, começou a vir à tona um escândalo que, se comprovado, tem potencial de colar no seu Governo a marca da corrupção. Com um agravante: trata-se de um caso envolvendo o manejo da crise sanitária que já matou mais de meio milhão de brasileiros. A investigação sobre as suspeitas de irregularidades na compra da vacina indiana Covaxin já estava nas mãos do Ministério Público Federal e do TCU (Tribunal de Contas da União), mas entrou de vez na rota da CPI da Pandemia depois das declarações explosivas do deputado federal bolsonarista Luís Miranda (DEM-DF). Na TV, Miranda disse ter alertado Bolsonaro sobre os supostos problemas do contrato, no valor de 1,6 bilhão de reais.
Miranda afirma que alertou o presidente de que seu irmão, Luís Ricardo Fernandes Miranda, um funcionário do Ministério da Saúde, recebeu uma pressão atípica para fazer o pagamento para um intermediário que vendia a Covaxin, produzida pela empresa indiana Barath Biotech. O aviso foi feito pessoalmente ao presidente pelo deputado e por Fernandes Miranda em 20 de março, em uma reunião extraoficial no Palácio da Alvorada. Mesmo diante dos alertas e das promessas de Bolsonaro que, segundo os irmãos Miranda, disse que ordenaria a investigação do caso, não está claro o que foi feito. O aviso também fora dado ao então ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello.
“Entreguei a Bolsonaro. O caso não é só de pressão. É gravíssimo: tem desvio de conduta, invoice [nota fiscal] irregular, pedido de pagamento antecipado que o contrato não previa, quantidades diferentes”, disse o parlamentar à emissora CNN Brasil. “O presidente sabia que tinha crime naquilo”, sintetizou o parlamentar.
Em resposta a essas afirmações, a reação do Governo foi contra os denunciantes. O ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, Onyx Lorenzoni (DEM-RS), disse que o Governo processará o deputado Miranda por denunciação caluniosa. O irmão dele também será processado pelo mesmo delito, por fraude de documentos oficiais e por prevaricação porque, segundo o Governo, ele não revelou aos chefes imediatos as irregularidades. “Deputado Luís Miranda, Deus tá vendo. Mas o senhor não vai se entender só com Deus, não, mas também com a gente”, ameaçou Lorenzoni durante um pronunciamento à imprensa em que ele não respondeu a nenhuma pergunta.
A vacina Covaxin teve sua compra intermediada pela Precisa Medicamentos. Esse foi o imunizante mais caro adquirido pelo Governo brasileiro, ao custo de 15 dólares por dose e a única que não foi feita diretamente com o laboratório fabricante. A CPI da Pandemia já havia suspeitado dos negócios entre o Ministério da Saúde e a empresa por três razões: 1) o preço acima dos demais, já que as outras cinco vacinas compradas até o momento custavam no máximo dez dólares; 2) a incomum celeridade entre o início das negociações e a assinatura do contrato, foram três meses, enquanto que o da Pfizer, por exemplo, foram quase 11 meses; e 3) o controlador da Precisa, Francisco Emerson Maximiano, é investigado por ter assinado um outro contrato de fornecimento de medicamentos de alto custo com o Governo, de 20 milhões de reais, e não ter entregue os produtos. Os sigilos bancário e fiscal de Maximiano foram quebrados pela CPI da Pandemia, que apura a omissão do Governo no combate ao coronavírus. O empresário deve falar na semana que vem na comissão.
O caso tem sido apontado pelos senadores da CPI como o mais grave envolvendo o Governo até o momento. Desde que a comissão iniciou os seus trabalhos, em abril, a gestão Bolsonaro tentou desviar o foco e quis que as investigações se focassem nos casos de corrupção envolvendo Estados e municípios. Enquanto que os opositores defendiam a narrativa de que o presidente foi negacionista no trato da pandemia, omisso nas compras de vacina durante todo o ano de 2020 e, por essa razão, poderia ser responsabilizado por milhares de mortes. Agora, abre-se um novo flanco e de causalidade mais direta: possíveis atos de corrupção.
Depois da revelação dos últimos dias, a comissão se voltará mais intensamente contra esses atos do Governo Federal. Miranda prometeu entregar à CPI da Pandemia “provas mais contundentes e incriminadoras”, na próxima sexta-feira, quando ele e o irmão prestarão depoimento aos senadores. “Temos como comprovar, categoricamente que a intenção era maléfica. Ela tinha indícios claros de corrupção”, declarou Luís Miranda. Três analistas de risco político disseram à reportagem que, se o parlamentar tiver todos esses documentos que diz ter, o caso tem tudo para afetar ainda mais o Governo Bolsonaro. O relator da CPI, Renan Calheiros (MDB-AL), chamou de coação de testemunha a ameaça de processo feita por Lorenzoni.
Durante um pronunciamento em que tentou rebater os argumentos dos irmãos Miranda, o ministro Lorenzoni negou qualquer irregularidade e ainda pôs em dúvida os interesses do parlamentar. “Trata-se da maior fake news já produzida no Brasil. A quem interessa? Talvez às mesmas pessoas que no Senado Federal se dedicam a atacar o presidente Jair Bolsonaro.” O ministro não negou nem mencionou o suposto encontro que os irmãos Miranda dizem ter tido com Bolsonaro.
Membro da base bolsonarista que se elegeu defendendo o combate à corrupção, o deputado Miranda disse que resolveu revelar o que sabia porque seu irmão passou a sofrer ainda mais pressão e vazou um áudio dele contando o esquema irregular a outras pessoas. O servidor Luís Ricardo Miranda já depôs sobre o caso em 31 de março ao Ministério Público Federal. O deputado foi eleito após ter construído a fama como youtuber que promovia o empreendedorismo e foi, ele próprio, acusado de calote nos EUA.
Se não bastassem as denúncias sobre pressão de um funcionário do Ministério da Saúde, há a suspeita de que o Governo pagou um preço 1.000% acima do que a Bharat Biotech cobraria pela Covaxin, que só teve seu uso emergencial e limitado aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em 4 de junho. Um telegrama sigiloso da embaixada brasileira em Nova Délhi de agosto do ano passado relatava que o imunizante produzido pela Bharat Biotech tinha o preço estimado 1,34 dólares.
Em dezembro, outro comunicado da embaixada mostrava que o imunizante indiano “custaria menos do que uma garrafa de água”. Em fevereiro deste ano, contudo, o Ministério da Saúde assinou um contrato se comprometendo a pagar 15 dólares por unidade da Covaxin. Os detalhes desses diálogos diplomáticos foram revelados pelo jornal O Estado de S. Paulo.
No pronunciamento no Palácio do Planalto, Lorenzoni disse que não houve irregularidades no contrato com a Precisa Medicamentos. “Não houve favorecimento a ninguém. Não houve sobrepreço. Não houve compra alguma”, disse.
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EL PAÍS
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