Um dos depoimentos centrais da CPI da Pandemia ―o do general e ex-ministro Eduardo Pazuello, nesta quarta-feira― tem potencial de impor desgaste ao Planalto e aos militares. De temperamento considerado “explosivo” quando submetido a pressões, Pazuello já é investigado sobre uma suposta omissão na crise de oxigênio de Manaus no início do ano e foi a pessoa que esteve à frente da Saúde durante mais tempo na crise sanitária (10 meses). Abraçou uma série de ações que o colocam em xeque, como a indicação da cloroquina ao tratamento da covid-19 e a narrativa de descrédito às vacinas, além de uma possível morosidade para adquiri-las. Conseguiu no Supremo Tribunal Federal (STF) um habeas corpus que lhe dá o direito de silenciar diante de perguntas feitas pelos senadores que possam incriminá-lo, mas segue obrigado a dizer a verdade sobre terceiros ―inclusive relacionada ao ex-chefe, presidente Jair Bolsonaro, sobre quem já disse ser “simples assim: um manda e o outro obedece”. Pessoas próximas ao ex-ministro dizem que ele não deverá “cair em provocações” e que está pronto para depor. Enquanto isso, oposicionistas o veem abandonado pelo Governo e devem tentar tirar do general informações que possam responsabilizar Bolsonaro.
Pazuello foi convocado pelo Senado como testemunha, uma estratégia para que não pudesse furtar-se a ir à CPI. Seu depoimento é o que mais preocupa o Planalto. Nos bastidores, ventila-se o receio de que o general possa alimentar o desgaste do presidente e das Forças Armadas, já que optou por permanecer na ativa ao assumir o cargo político. Inicialmente, tinha seu depoimento marcado para o dia 5 de maio, mas alegou à época ter tido contato com duas pessoas infectadas pelo novo coronavírus e pediu adiamento. Foi criticado por ter recebido visita do ministro Onyx Lorenzoni durante sua quarentena, mas ganhou tempo para preparar-se e conseguiu uma blindagem parcial com o habeas corpus. Como ex-ministro, será acompanhado durante o depoimento pelo advogado da União Diogo Palau. “Aquele que espera que o ex-ministro Pazuello entre em alguma provocação ou não aguente a maratona se surpreenderá”, afirmou em nota o advogado Zoser Hardman, que o ajudou na preparação para a CPI.
Parlamentares governistas e de oposição consideram o general uma testemunha central por ser o titular da Saúde mais longevo na crise. A temperatura do que se espera nesta quarta subiu com o depoimento do ex-chanceler Ernesto Araújo na terça, ao atribuir decisões como a de aderir à menor cota possível (de 10% da população) na aquisição de vacinas pelo consórcio global Covax Facility ao ministério então comandado pelo general. “Ernesto Araújo sistematicamente enfatizou que todas as iniciativas da política externa aconteceram em decorrência do Ministério da Saúde. À exceção da compra de cloroquina e da ida a Israel, que foi responsabilidade do presidente Bolsonaro. Ou seja, ele transfere o ônus da responsabilidade ao Ministério da Saúde e ao ex-ministro Pazuello”, avalia o relator Renan Calheiros (MDB-AL). O vice-presidente da CPI, senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), chegou a afirmar que o general da ativa está abandonado. “O que está sendo feito pelo Governo é um ato de covardia, está sendo abandonado e entregue aos leões para só ele pagar o preço. A pergunta ao Pazuello será: o senhor é o responsável por tudo isso?”, adianta.
Na avaliação do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), o depoimento de Pazuello deve ser produtivo até quando ele optar por calar-se. “Mesmo aqueles pontos em que ele manifestar o desejo de se manter em silêncio, conseguiremos, por via transversa, saber se terá informação sobre quais são as questões que ele não poderá se manifestar com medo de se incriminar.”
Outro fator que deve contribuir para o nervosismo de Pazuello nesta quarta é a reportagem do Jornal Nacional, da TV Globo, exibida nesta terça, mostrou contratos do Ministério da Saúde no Rio que apresentam indícios de fraude. Segundo o programa, militares apontados por Pazuello para comandar a pasta no Rio escolheram sem licitação empresas para reformar prédios antigos na cidade. Um das obras, orçada em 20 milhões, foi entregue a uma empresa sediada em Magé, na Baixada Fluminense, numa área dominada pela milícia. O contrato foi anulado pela Advocacia-Geral da União, mas segue sob investigação.
Investigação sobre suposta omissão na crise de Manaus
Já pesa contra Pazuello um inquérito que investiga uma possível omissão ante a crise de oxigênio que levou dezenas de pessoas a morrerem asfixiadas em Manaus. Autorizada pelo STF quando o general ainda comandava a pasta, a investigação foi enviada à primeira instância e está nas mãos do Ministério Público Federal do Distrito Federal. Pazuello não foi formalmente acusado de crimes, mas responde à Justiça Federal do Amazonas por improbidade administrativa. O general teria sido alertado várias vezes pelo menos seis dias antes do desabastecimento do insumo no Amazonas e, no entendimento do MPF, houve omissão no monitoramento e nas medidas para evitar o desabastecimento, demora para a transferência de pacientes, pressão para a utilização do chamado “tratamento precoce” e ausência de medidas preventivas como o isolamento social. Nesta quarta, o Tribunal de Contas da União também volta a se debruçar sobre um processo no qual técnicos da corte pedem punição ao ex-ministro pela má condução da pasta durante a crise sanitária.
Atraso na compra de vacinas
Na CPI, Pazuello ainda deverá ser indagado sobre o suposto atraso do Brasil para adquirir vacinas e a rejeição de ofertas da Pfizer no ano passado. Durante sua gestão, o ex-ministro seguiu posicionamentos erráticos de Bolsonaro. Em outubro, foi desautorizado publicamente pelo presidente a assinar o contrato de intenção de compra da Coronavac/Butantan diante de uma disputa política com o governador de São Paulo, João Doria, e abraçou uma narrativa de descrédito às vacinas. Várias vezes ressaltou possíveis efeitos adversos e criticou cláusulas que considerava “leoninas” para comprar imunizantes da Pfizer.
Até o fim do ano passado, Pazuello não possuía um plano consistente para iniciar a vacinação e só divulgou o cronograma de aquisição quando obrigado por decisões do STF. Ao dizer que “um manda e o outro obedece” em uma live ao lado do presidente sobre a Coronavac, Pazuello sinalizava seguir ordens. E é nisto que senadores da oposição devem focar nesta quarta ao aprofundarem as indagações sobre possíveis falhas do Governo federal nas políticas da crise.
Insistência na defesa da cloroquina
Logo que assumiu o ministério, Pazuello publicou um documento que orientava o uso da cloroquina em pacientes com covid-19. O general o fez depois que os dois médicos que o antecederam ―Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich― deixaram o cargo por divergir de Bolsonaro sobre o estímulo ao medicamento sem eficácia. Nos últimos meses de gestão, Pazuello abraçou uma verdadeira ginástica retórica para justificar políticas do Governo que integrou. Afirmou que o documento da cloroquina não era um protocolo, mas uma forma de evitar sobredoses caso médicos optassem por prescrever o remédio. Alegou que a defesa a um “tratamento precoce” na verdade era pelo “atendimento precoce” para que pessoas com sintomas de covid-19 não demorassem a buscar serviços médicos. Abusou de justificativas facilmente contrastáveis com as ações da pasta durante sua gestão.
O Governo turbinou a produção de cloroquina pelo Exército e o ministério chegou a lançar um aplicativo que indicava o uso do chamado kit covid-19. A plataforma TrateCov foi lançada no Amazonas, teoricamente para auxiliar médicos no diagnóstico. O aplicativo, porém, estava aberto a qualquer pessoa e indicava remédios como cloroquina, ivermectina e azitromicina até para bebês, bastava marcar o aceite em aderir ao tratamento precoce. “O que observamos? A plataforma era aberta e, quando fomos verificar, ela estava induzindo a prescrição de medicamentos”, afirmou Pazuello em uma audiência no Senado em fevereiro. Ele disse que a partir daí a ferramenta foi retirada do ar imediatamente e um servidor foi afastado. Também foram convocados a depor três de seus auxiliares: a secretária de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, Mayra Pinheiro, que ficou conhecida como capitã cloroquina; o ex-secretário-executivo Élcio Franco; e o secretário de Ciência e Tecnologia da pasta, Hélio Angotti Neto.
Denúncia do ‘pixulé’
Pazuello deixou o cargo de ministro em março sob forte pressão diante do colapso hospitalar, da lentidão da vacinação e das altas taxas de mortes diárias por covid-19 no país. Ao passar o posto ao médico Marcelo Queiroga, afirmou sofrer boicote interno e fez acusações a médicos e políticos, sem citar quaisquer nomes. Segundo ele, uma “carreata de gente” pediu dinheiro “politicamente” no fim do ano passado. Tentou creditar sua saída ao fato de desagradá-los. “Foi outra porrada. Por que todos queriam o pixulé do final do ano”, afirmou em vídeo ao lado de Queiroga. Pazuello também deverá ser questionado por senadores sobre as supostas pressões políticas que denunciou ao ser exonerado.
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EL PAÍS
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