O presidente Jair Bolsonaro conversa com o ex-ministro da Saúde do Brasil, Luiz Henrique Mandetta, em 2019O depoimento do ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta estreará nesta terça-feira, 4 de maio, uma das maiores provas de fogo que o presidente Jair Bolsonaro enfrentará na CPI da Covid-19 no Senado. Político experiente, Mandetta tenta se cacifar para concorrer às próximas eleições presidenciais e espera-se dele um dos tons mais críticos com potencial de gerar constrangimento ao presidente. As outras três pessoas que comandaram a pasta durante a crise sanitária ―Nelson Teich, Eduardo Pazuello e Marcelo Queiroga― também serão ouvidas ao longo da semana. Apesar de Mandetta, demitido pelo presidente após um processo de fritura pública em abril do ano passado, já ter explorado suas divergências no Planalto, não se descarta que ele ainda esconda algumas cartas na manga. Alguns dos momentos mais controversos já foram levados a público no livro que publicou no ano passado sobre os 90 dias em que comandou a gestão da pandemia no ministério.
Do negacionismo às teorias da conspiração de que o vírus seria uma criação da China abraçados por Bolsonaro, Mandetta narrou os bastidores que levaram a cloroquina, um medicamento sem eficácia contra a covid-19, a virar a bala de prata do Governo. Também externou as tentativas de interferência em altos cargos da pasta (com tentativa de influência, segundo ele, do senador Flávio Bolsonaro: “Quem articulou as exonerações e impôs os novos nomes mirava o controle de mais de 80% do orçamento do Ministério da Saúde” ) e alertou sobre a fragilidade do sistema de saúde em algumas regiões do país, como Manaus, que no início deste ano viu pessoas morrerem asfixiadas pela falta de oxigênio para tratar a covid-19. Chegou a conversar com o presidente e pessoas próximas a ele sobre o perigo de desassistência, caso não fossem tomadas medidas enérgicas. “Já estávamos ali [no início da crise] preocupados com Manaus, por exemplo, que tem um sistema de saúde limitado”, relata no livro. Por conta da crise de oxigênio na capital amazonense durante a gestão de Pazuello, o general tem sido orientado pelo Planalto sobre seu depoimento no Senado para tentar comprometer o mínimo possível o presidente Bolsonaro.
Agora, senadores governistas se preparam para evitar que Mandetta, do DEM, faça do seu depoimento na CPI um palanque político destilando críticas a Bolsonaro com vistas a 2022. Eles devem tentar fazer o ex-ministro ater-se ao período que esteve à frente do ministério e questioná-lo também se ele não poderia ter se preparado melhor para frear o vírus. Há questionamentos públicos, por exemplo, sobre a escassez de testes na gestão do político e sobre a orientação para que as pessoas só procurassem o sistema de saúde ao perceberem sintomas respiratórios como falta de ar. Esta última premissa é até hoje criticada pelo presidente. “Na época eu perguntei ao Mandetta: o cara com falta de ar vai para o hospital para fazer o quê?”, questionou em uma live, dando a entender que seria para ser intubado.
No livro, Mandetta atira para todos os lados e faz críticas explícitas ao Governo que integrou. Não faz uma autocrítica contundente, o que senadores governistas esperam estimular durante seu depoimento na CPI. Na obra, suas ações são frequentemente justificadas por erros externos ou cálculo político. A ver o tom que o experiente político ―que disse que só falaria à imprensa após seu depoimento “em respeito aos senadores”― irá adotar nesta terça pela manhã. À tarde, é a vez do ex-ministro Nelson Teich. E, na quarta, haverá o depoimento mais aguardado, do ex-ministro Eduardo Pazuello. O último a depor será o atual titular da Saúde, Marcelo Queiroga. Todos foram convocados como testemunhas e não como investigados. A expectativa é que as declarações deles sejam cruzadas com documentos para extrair as contradições em busca da digital do Governo Bolsonaro na maior crise de saúde dos últimos 100 anos.
Em Um paciente chamado Brasil, Mandetta compara a reação de Bolsonaro diante da pandemia aos estágios do luto. Diz que primeiro o presidente negou a gravidade do vírus (chamou a covid-19 de “gripezinha”), depois destilou sua raiva contra o próprio ex-ministro (chegando a demiti-lo) e, por fim, abraçou a busca por um milagre, com a cloroquina. Mandetta diz que Bolsonaro passou a tratar as medidas de isolamento social como uma grande conspiração para impedir a sua reeleição. Afirma que tentou muitas vezes mostrar ao presidente a gravidade da crise, mas Bolsonaro nunca interessou-se pelos dados. Estava mais preocupado com a economia e sua reeleição.nA crise entre os dois ficava cada dia mais insustentável. De um lado, o presidente minimizava o coronavírus e clamava pela volta à normalidade para salvar a economia. De outro, seu ministro da Saúde pedia que a população ficasse em casa para evitar o contágio e preservar vidas. Ambos faziam os cálculos políticos de suas ações.
Crescia a falsa dicotomia entre economia e saúde no Brasil, mas, segundo Mandetta, nos bastidores da administração federal, nem mesmo o ministro Paulo Guedes demonstrava qualquer interesse em entender a pandemia e mitigar os impactos econômicos. “Na equipe econômica do Governo, só Roberto Campos [presidente do Banco Central] conversava comigo sobre os impactos do novo coronavírus na economia. Paulo Guedes demonstrava profundo desinteresse sobre o assunto.” Segundo Mandetta, tampouco o próprio presidente teria demonstrado disposição para ouvir a projeção de mortes calculada pelo seu Ministério da Saúde ―no pior cenário, a pasta previa que o país chegaria a 180.000 mortes. O país já superou 400.000 óbitos por covid-19. “Era sempre ‘agora não dá’, ‘outra hora você passa’”, conta o ex-ministro, que diz ter entregado os dados impressos a Bolsonaro. “Nunca aceitou sentar comigo para ver a realidade que o seu Governo estava para enfrentar.”
Mandetta ainda reclama no livro que quase não havia espaço para expor, nas reuniões ministeriais, a real dimensão da crise de saúde pública. Segundo ele, Bolsonaro usava essas ocasiões para criticar os “inimigos da semana” ―fosse a China, o Congresso, o Supremo Tribunal Federal, adversários políticos ou a imprensa. “Para ele, a paralisação das atividades econômicas era um golpe dos governadores para inviabilizar seu Governo e causar uma convulsão social”, afirma o ex-ministro. Ele acrescenta que o presidente aventava a necessidade de ações repressivas e dizia que teria que “colocar o Exército para cima do povo” porque achava que o isolamento social aumentaria a fome e a população poderia saquear comércios e supermercados. Naquela época, o Congresso articulava o auxílio emergencial para a população.
“O presidente não deixou que publicássemos recomendações sobre sepultamentos no caso de transmissão sustentada do novo coronavírus numa cidade. Segundo ele, o tema era mórbido demais”, narra Mandetta. Bolsonaro também teria ligado pessoalmente para o ex-ministro para derrubar a suspensão de cruzeiros marítimos (espaço com alto risco de contaminação) após um forte lobby de setores do turismo. A decisão ―que Mandetta justifica como estratégia política, tendo decidido esperar um momento mais favorável para implementá-la― desagradou seu então secretário de Vigilância em Saúde, Wanderson de Oliveira, que chegou a anunciar que deixaria o cargo. Mandetta não aceitou a demissão, e ele acabou decidindo permanecer no posto.
O ex-deputado pelo DEM havia conseguido a atenção do ministro da Casa Civil, Walter Braga Netto, que havia se espantado com a apresentação das projeções de mortes e outros dados da pandemia. Os militares tentaram convencer o presidente da gravidade da crise e por algum tempo sustentaram Mandetta no cargo. Mas a situação ficou insustentável após uma entrevista do ex-ministro à Rede Globo na qual criticou o comportamento errático de Bolsonaro sobre as aglomerações. Nos bastidores, o presidente já articulava ações sem consultar o seu então ministro da Saúde, especialmente para criar um protocolo da cloroquina. Passou a receber médicos alinhados ao bolsonarismo e, para uma dessas reuniões, só convocou seu ministro da Saúde de última hora. Segundo o ex-ministro, a posição de Bolsonaro era: “Vamos dar esse remédio porque com essa caixinha de cloroquina na mão os trabalhadores voltarão à ativa”. O presidente ainda teria incumbido o Exército de produzir cloroquina por achar que na Fiocruz (que historicamente produz o medicamento no país) só havia comunista.
Mandetta ainda relata que Bolsonaro movia-se conforme a pressão das redes sociais, citando como exemplo que o presidente só decidiu repatriar os brasileiros que estava em Wuhan no início da crise por conta da repercussão negativa na internet. Naquele momento, ainda no início da pandemia, cresciam os ataques xenofóbicos contra a China. Bolsonaro e seus filhos seguiram o discurso de Trump e acusaram o país asiático de ter criado o vírus. A ausência de um documento do Brasil endereçado à China, segundo o ex-ministro, foi a semente da crise diplomática que depois trouxe problemas para as importações de insumos médicos ao país. A China é um dos maiores produtores tanto de equipamentos quanto de matéria-prima para vacinas e medicamentos. O estopim, para Mandetta, teria sido um tuíte do deputado Eduardo Bolsonaro. “Foi o primeiro mal-estar com a China, e as consequências desse ataque afetariam todas as nossas relações futuras”, escreve.
A performance de Mandetta, que apareceu como o político mais bem avaliado em uma pesquisa Atlas Político em março, será um dado avaliado pelo mundo político para ver se o ex-ministro tem chances de construir uma candidatura fora dos polos de Jair Bolsonaro e Luiz Inácio Lula da Silva.
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EL PAÍS
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