Dafne Cristine de Moura Acioli (centro) é abraçada pelos pais na colação de grau: filha de porteiro foi criada no Complexo do Alemão e mudou de vida graças aos estudosSem saber que estava sendo gravado, o ministro da Economia, Paulo Guedes, disse esta semana que o Fies, programa federal para estudantes de baixa renda financiarem mensalidades do ensino superior, é "um desastre".
Em reunião do Conselho de Saúde Complementar, no último dia 27, ele afirmou que "o filho do porteiro do prédio" conseguiu financiamento mesmo tirando nota zero no vestibular. "Deram bolsa para quem não tinha nenhuma capacidade. Botaram todo mundo", criticou.
Entre os mais de 2 milhões de beneficiários do Fies, estão vários filhos de porteiros, como o desenvolvedor Douglas de Souza Luz, de 23 anos.
Natural de Rio Negro (PR), ele ingressou em 2015 no curso de Sistemas de Informação da Universidade do Contestado (UnC), na cidade vizinha, Mafra (SC). No primeiro semestre, ele ainda não havia conseguido o financiamento.
"A primeira mensalidade foi um susto. Tive que vender meu videogame para conseguir pagar", lembra. "Tive um privilégio imenso de conseguir um estágio na área, já no início do curso. Aí eu pagava R$ 500 da mensalidade, e meus pais dividiam entre eles o restante, para completar."
Para obter o financiamento de 80% pelo Fies, foi preciso apresentar a nota do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) do ano anterior.
Formado há dois anos, Douglas conta que leu a declaração de Guedes na quinta-feira (29), sem prestar a devida atenção. A ficha só caiu no dia seguinte.
"A gente sempre espera o pior possível das declarações do Paulo Guedes. A gente já espera que tenha esse ódio com as classes mais baixas. Então, não me surpreendi tanto. Hoje pela manhã que vi a manchete e parei para refletir. A gente está tão acostumado com o absurdo que tem que parar para pensar no que leu até cair a ficha."
O pais de Douglas, Roberto de Souza Luz, passou os últimos dois anos desempregado, e em 2021 voltou a trabalhar como porteiro em Rio Negro.
"Boa parte do meu esforço hoje é para ajudar meus pais. Eles abriram mão de muita coisa para eu chegar onde estou", completa.
Nascida e criada no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro (RJ), Dafne Cristine de Moura Acioli ficou incrédula ao ler as palavras do ministro de Bolsonaro.
"Primeiro, foi um choque. É uma informação absurda", diz.
"Vi comentários de pessoas postando a reportagem, então fui procurar ler a fala completa dele [Guedes]. E, de cara, constatei que aquela fala era mentirosa. Além do meu pai ser porteiro, eu nasci e fui criada na favela, e me dediquei muito para chegar à universidade. Se não fosse graças a esse projeto, eu não conseguiria concluir o curso."
Filha do porteiro Daniel Moura, que trabalha até hoje no ramo, Dafne estudou Gestão de Recursos Humanos, na Universidade Estácio de Sá, com uma bolsa de 100% do Programa Universidade para Todos (Prouni).
Ela lembra que precisou se esforçar muito para ingressar, porque o programa exigia notas mínimas.
"Foi uma fala completamente preconceituosa. Me magoou muito, me chateou, porque eu sei da importância disso na vida das pessoas, e sei que construí minha vida em cima do curso que eu fiz. Foi uma fala que me impactou de verdade", admite.
A formatura, em 2011, foi um divisor de águas na vida de Dafne. "Eu trabalho na área administrativa, consegui fazer uma pós-graduação e tive várias promoções na carreira justamente por fazer a minha faculdade de forma gratuita", finaliza.
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Brasil de Fato
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