O presidentes da Câmara, Arthur Lira, e do Senado, Rodrigo Pacheco, dão declarações após reunião no Palácio do Planalto no dia 31 de março, em BrasíliaO Congresso Nacional caminha para dar sua benção a empresários que queiram furar a fila da vacinação contra a covid-19, indo na contramão do direito universal e igualitário à saúde garantido pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e pela Constituição federal. Aprovado por 317 votos a favor e 120 contra na terça-feira, 6 de abril, o Projeto de Lei 948 flexibiliza a compra de vacinas pelo setor privado, permitindo que empresários adquiram imunizantes para seus funcionários e familiares e possam vaciná-los fora do âmbito do Programa Nacional de Imunizações (PNI). Vinculado ao Ministério da Saúde, o PNI é responsável por distribuir proporcionalmente as vacinas entre Estados e municípios e garantir que as doses sejam aplicadas primeiro em quem mais precisa. A contrapartida é que metade das doses adquiridas por empresários sejam repassadas ao setor público.
O texto-base também dá o aval para que o setor privado adquira imunizantes que não tenham sido aprovados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) —um privilégio que o Governo federal, Estados e municípios não possuem. A justificativa de seus apoiadores é a de que o projeto agiliza a compra de novas vacinas e a aplicação de doses no país, o que, em tese, ajudaria a agilizar a imunização em massa da população.
Porém, o PL 948 atende sobretudo às pressões de empresários —muitos deles ligados ao presidente Jair Bolsonaro e ativos negacionistas da crise, como Luciano Hang, dono da rede de lojas Havan— impacientes pela reabertura da economia. O texto também retira do colo de Bolsonaro, que nega a gravidade da pandemia de coronavírus desde o seu início e boicota medidas de isolamento social, a pressão para a aquisição de novas vacinas. Reforça, ainda, sua retórica favorável a reabertura da economia. A velocidade da vacinação é considera aquém do desejável: até o momento, pouco mais de 20 milhões de brasileiros, cerca de 10% da população, recebeu a primeira dose do imunizante.
Patrocinada pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), com a benção do Governo, a iniciativa ganhou prioridade e foi tramitada rapidamente em poucos dias —ao contrário de outras, como a renovação o auxílio emergencial— num momento em que o Brasil ultrapassou pela primeira vez, na mesma terça-feira da votação, a marca de 4.000 mortes diárias. Para esta quarta-feira está prevista a votação de destaques, que podem alterar o texto-base. Em seguida, o projeto segue para o Senado, onde também espera-se que seja aprovado. “Ao invés de perder tempo com isso, o Brasil deveria resolver as questões de gestão diplomática, administrativa, política, e resolver as compras”, afirmou em entrevista ao EL PAÍS a médica pneumologista Margareth Dalcolmo.
Aumento da desigualdade
O maior problema é que existe uma escassez global de vacinas. As nações mais ricas saíram na frente e somente 10 países concentram 75% das vacinas aplicadas em todo o mundo. Há uma fila de espera para a aquisição de novos imunizantes, mas mesmo os negócios já fechados enfrentam o atraso na entrega —como é o caso do fiasco na distribuição da vacina da AstraZeneca para a União Europeia. Já o Brasil paga o preço por ter recusado ofertas de vacinas no ano passado ou ter demorado para abrir novas frentes de negociação com farmacêuticas. Hoje conta somente com doses da Coronavac (produzida pelo Instituto Butantan) e da AstraZeneca (produzida pela Fiocruz) ―ainda assim, o fornecimento não é regular e os institutos dependem de insumos vindos do exterior. Diante desse cenário, os especialistas são unânimes em dizer que as doses que venham a ser adquiridas pelo setor privado estarão deixando de ir para o PNI. Em suma, o projeto dá o aval para que o setor privado desvie as vacinas de quem mais precisa.
Ainda que autorizadas pelo Congresso, não é garantido que empresas consigam comprar as vacinas. Além da escassez global, grandes laboratórios, como a Pfizer ou a AstraZeneca, só vendem para os governos. A solução para esse impasse foi ventilada pelo empresário Carlos Wizard, fortemente vinculado ao Governo Bolsonaro e quem, junto com Hang, lidera o lobby pela aprovação da lei e a frente contra medidas de isolamento social. Em entrevista à revista Veja, ele disse que o Ministério da Saúde deverá atuar como intermediário para que o grupo consiga 10 milhões de doses nos próximos 30 dias.
Ou seja, a pasta faria a compra para esses empresários e atuaria como espécie de laranja. “O Governo precisará participar de uma negociação tendo dinheiro de sobra para comprar ele próprio as vacinas, mas terá que participar para facilitar vacinas que irão para grupos empresariais influentes. Não irão para agilizar o PNI, mas para favorecer algumas empresas”, explicou por meio de seu perfil no Twitter o economista Thomas Conti, membro Infovid, grupo dedicado à divulgação científica e ao enfrentamento de desinformações sobre a covid-19. “Se existem vacinas aprovadas e disponíveis no mercado, basta o Governo comprar. Não há necessidade de envolver terceiros. Nem do Governo repassar e receber doação depois para economizar uns trocados”, prosseguiu. “Em suma, o PL não ajuda na velocidade [da vacinação] porque qualquer dose que chegar hoje para setor privado só chegará com intermédio do Ministério da Saúde. Isto é, se o ministério declarar desinteresse em uma vacina. Falta de dinheiro não é. Precisa não querer usá-las no PNI. O que é absurdo”, acrescentou.
O que diz o projeto
O PL 948 promove alterações em outro projeto, o PL 14.125. Sancionado em 10 de março, seu segundo artigo autoriza que empresas adquiram vacinas contra a covid-19 aprovadas pela Anvisa, “desde que sejam integralmente doadas ao Sistema Único de Saúde (SUS), a fim de serem utilizadas no âmbito do Programa Nacional de Imunizações (PNI)”. Após o término da vacinação dos grupos prioritários, segue a lei, as empresas deverão repassar 50% de doses ao SUS. O projeto foi patrocinado pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), sob o argumento de que daria a base legal para o setor privado ajudar o poder público no programa de vacinação.
Com o PL 948, essas normas ficarão ainda mais flexíveis. O texto-base diz que as pessoas jurídicas de direito privado poderão atuar individualmente ou em consórcio para adquirir imunizantes contra a covid-19 aprovados para uso emergencial ou definitivo pela Anvisa, “ou por qualquer autoridade sanitária estrangeira reconhecida e certificada pela Organização Mundial da Saúde”, podendo ainda “contratar estabelecimentos de saúde que tenham autorização para importar e dispensar vacinas”.
Esse trecho levanta a hipótese de que os empresários desejam driblar a Anvisa e trazer vacinas que ainda não foram aprovadas pela agência brasileira. Em janeiro, a Associação Brasileira das Clínicas de Vacinas (ABCVAC) enviou uma delegação à Índia para negociar a possível compra de milhões de doses da Covaxin, uma vacina indiana que ainda não tem sua eficácia comprovada. No fim de março, a Anvisa negou a certificação de boas práticas da farmacêutica Bharat Biotech, responsável pela produção do imunizante, por questões sanitárias, de controle de qualidade e de segurança em sua fabricação.
Além de ampliar a desigualdade, a brecha poderia oferecer risco à saúde pública. A vacina rechaçada pela Anvisa não poderia ser adquirida pelo Ministério da Saúde nem utilizada pelo SUS. Mas a mesma regra não se aplicaria ao setor privado, caso o PL 948 seja aprovado. “Além da absurda fila paralela para vacinação privada durante a pandemia, também é inconstitucional excluir a necessidade de autorização da Anvisa. O Estado tem o dever de controlar e fiscalizar medicamentos. É atribuição da Anvisa e não pode ser delegada para agência estrangeira”, argumentou o médico e advogado sanitarista Daniel Dourado. Enquanto isso, governadores de 12 Estados buscam meios de importar 66 milhões de doses da vacina russa Sputnik V. Outras 10 milhões de doses já foram adquiridas pelo Ministério da Saúde. O obstáculo é justamente a Anvisa, que ainda não liberou a importação dos imunizantes por falta de dados.
Em outro trecho, o projeto diz que as aquisições feitas com laboratórios que já venderam vacinas ao Ministério da Saúde “só poderão ser pactuadas após o cumprimento integral dos contratos e entrega das vacinas ao Governo Federal”. Isso deixa implícito que empresários não esperam adquirir doses de laboratórios como a Pfizer ou a AstraZeneca. “Será que esse grupo empresarial quer um esquema para trazer vacinas de um laboratório menor, ou menos transparente, ou menos seguro? É uma hipótese”, afirma Conti.
O PL 948 também segue prevendo a possibilidade de doação integral das doses ao SUS. Porém, coloca como alternativa que “sejam destinadas à aplicação gratuita e exclusiva nos seus empregados, cooperados, associados e outros trabalhadores que lhe prestem serviços, inclusive estagiários, autônomos e empregados de empresas de trabalho temporário ou de prestadoras de serviços a terceiros”. Em contrapartida, as companhias deverão doar ao SUS “a mesma quantidade de vacinas adquiridas para essa finalidade”.
As vacinas adquiridas por empresários deverão ainda ser aplicadas “em qualquer estabelecimento ou serviço de saúde que possua sala para aplicação de injetáveis autorizada pelo serviço de vigilância sanitária local”, observando os critérios do PNI. O descumprimento das exigências previstas devem gerar uma multa equivalente a 10 vezes o valor gasto na aquisição das vacinas, segundo o projeto. O texto não detalha como será feita a fiscalização para garantir que todas as normas sejam cumpridas.
O PL teve a adesão de partidos do Centrão, que apoiam o Governo Bolsonaro, além de siglas de centro-direita como o PSDB, DEM e MDB. Contra o projeto se posicionaram a oposição de esquerda, como o PT, PCdoB, PSOL e Rede, além de boa parte do PSB e do PDT. Para Dourado, o texto-base é inconstitucional uma vez que fere o direito à saúde universal e igualitário provido pelo Estado. “Não há como justificar que funcionários de quaisquer empresas sejam vacinados antes de pessoas dos grupos prioritários”, afirmou. Em sua opinião, os empresários que querem comprar vacinas sem aprovação da Anvisa não “estão preocupados em imunizar os empregados, mas em usar isso como justificativa para pressionar a abertura de tudo”.
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EL PAÍS
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