Jair Bolsonaro cumprimenta militares da Aeronáutica durante celebração de 80 anos da Força Aérea Brasileira em 20 de janeiro de 2021Novembro de 2014. Um grupo de aspirantes a oficial do Exército brasileiro cruza com Jair Bolsonaro nos jardins da Academia Militar das Agulhas Negras. Começam a gritar: “Líder, líder, líder...”. Ele cumprimenta agradecido e improvisa algumas palavras diante das dezenas de jovens com uniforme de gala e quepe.
“Precisamos mudar esse país. Alguns vão morrer pelo caminho, mas em 2018 estou disposto, se Deus permitir, tentar jogar para a Direita esse país! (...) O Brasil é maravilhoso, temos de tudo aqui. Está faltando é político!”. Os militares aplaudem com entusiasmo, como mostra o vídeo publicado no YouTube por um dos filhos do atual presidente.
Quando Bolsonaro falou aos cadetes começava o quarto mandato do Partido dos Trabalhadores. Na Presidência, Dilma Rousseff, que entrou na história como a primeira presidenta. Mas também era uma guerrilheira que foi torturada durante a ditadura e impulsionadora da Comissão da Verdade. A corrupção do PT aflorava. A operação Lava Jato acabava de nascer.
Esse momento —as palavras, o público, o cenário— ajuda a entender a crise que explodiu surpreendentemente nesta semana entre o presidente mais ligado aos militares desde que o Brasil recuperou a democracia, em 1985, e a cúpula das Forças Armadas. Poucas vezes se viu o ultradireitista mais à vontade do que em um quartel cercado de militares, mas na terça-feira destituiu sem consideração o ministro da Defesa. Em um efeito dominó, no dia seguinte os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica renunciaram em uníssono.
Outro ponto fundamental é o alerta lançado por um dos demissionários, o general Edson Leal Pujol, comandante em chefe do Exército, há quatro meses: “Não queremos ser parte da política de governo e do Congresso, assim como que a política entre em nossos quartéis”. A crise aberta, inédita, disparou as procuras no Google do Brasil de “o que é um golpe de Estado”.
Bolsonaro, reformado do Exército como capitão há 33 anos, “avança cada vez mais em seu projeto de transformar as Forças Armadas em instrumento de Governo. Deu os primeiros passos em 2014, quando visitou a academia militar para começar sua pré-campanha”, diz o professor Eduardo Heleno, da Universidade Federal Fluminense (sem parentesco com o ministro-general de mesmo sobrenome). A crise desmedida desta semana é consequência da “politização dos militares, um fenômeno que Bolsonaro impulsiona, e a militarização da política, que não começou com ele”, acrescenta o especialista do Instituto de Estudos Estratégicos.
Deputado medíocre, em 2014 Bolsonaro era um nostálgico da ditadura famoso por suas grosserias misóginas e homofóbicas. Retornava à academia localizada entre o Rio de Janeiro e São Paulo onde se formou. Durante anos esteve proibido de pisar os quartéis por indisciplina. Abandonou o Exército após ser absolvido em um tribunal militar de instigar a soldadesca ao protesto, mas saiu sem honras. O ditador Ernesto Geisel chegou a dizer sobre ele em 1993: “É um caso completamente fora do normal, é até um mau militar”.
Pensar que conseguiria chegar a presidente era uma loucura. Um delírio. Mas soube ler a conjuntura, também nos quartéis, onde fez campanha eleitoral. O Bolsonaro candidato germinou em meio a uma onda gigantesca de desencanto com a política, agitada pelo discurso contra a corrupção e o ressurgimento do ódio ao PT. Capitalizou a irritação com os partidos, com a política tradicional. Como por mágica, conseguiu se vender como candidato antissistema apesar de levar metade da vida de uniforme verde oliva e outra metade na política pedindo melhorias salariais à tropa.
As Forças Armadas que agora afirmam guardar zelosamente o papel que a Constituição outorga a elas pressionaram sem pudor o Supremo Tribunal Federal com uma publicação no Twitter durante a campanha eleitoral de 2018. Era uma frase trabalhada que foi lançada na véspera de os juízes decidirem se permitiriam a candidatura ou não de Lula. “Eu asseguro à Nação que o Exército Brasileiro acredita que compartilha o desejo de todos os cidadãos de repudiar a impunidade e respeitar a Constituição, a paz social e a Democracia, assim como vigiar suas missões institucionais”, tuitou à época o comandante em chefe do Exército, o general Eduardo Villa Boas. O resultado é conhecido. O Supremo não habilitou Lula, que foi preso. E Bolsonaro disparou nas pesquisas.
Vários colegas da academia militar que chegaram ao generalato o acompanharam na corrida à presidência. Todos formados na Guerra Fria, quando o grande inimigo era o comunismo. Já no poder, além do general vice-presidente com quem foi eleito, trouxe vários outros para ministros. Juntos começaram a recrutar militares para o Governo, centenas e centenas que espalharam por todos os órgãos. Hoje presidem 15 empresas estatais (incluindo a Petrobras), e dirigem outras 92. Por volta de 3.000 militares na ativa e outros tantos na reserva ostentam cargos governamentais, segundo as contas de Heleno.
Outros generais, alguns na ativa, entraram no Gabinete na incessante dança das cadeiras deste Governo. Bolsonaro já substituiu vinte e quatro. E com o Brasil assolado pelo coronavírus, nomeou um general ministro da Saúde após demitir os dois anteriores, médicos, por não se submeter à sua normalização da pandemia, seu repúdio à máscara e sua promoção de remédios inúteis. “O Governo colocou um militar de alto escalão da ativa no comando da política pública em meio à maior crise sanitária dos últimos tempos simplesmente para ter alguém que não o criticasse”, diz o professor de Estudos Estratégicos.
O eleito foi o general Eduardo Pazuello, que confessou imediatamente que não sabia nada de saúde pública. Suposto especialista em logística, não conseguiu evitar dezenas de mortes em hospitais de Manaus, a principal cidade do Amazonas, por falta de oxigênio (motivo pelo qual é investigado) e comprar vacinas suficientes. Durante seus meses como ministro da Saúde disse abertamente que ele estava lá para cumprir ordens, não para questioná-las.
O fracasso na guerra contra o vírus, como Bolsonaro gosta de chamá-la, se traduz em mais de 330.000 mortos e quase 13 milhões de infecções, e o Brasil transformado em epicentro da pandemia e incubadora de cepas que ameaçam o restante do mundo. O mandatário demitiu o general e trouxe um terceiro médico, mas a reputação das Forças Armadas se deteriora. Também não funcionou a mobilização de soldados na Amazônia para combater incêndios e crimes porque, além de sair caro, o desmatamento continua aumentando.
O que acabou com a paciência dos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica são as pressões de Bolsonaro para que as Forças Armadas fiquem do seu lado e contra outras autoridades na batalha contra o coronavírus. Com sua renúncia em bloco, pretendiam soar o alarme e tentar preservar a independência da instituição. Mas Bolsonaro é tenaz: “Meu Exército brasileiro não vai sair à rua contra o povo e fazer com que se cumpram os decretos de governadores e prefeitos. Enquanto eu for o presidente não o fará”, proclamou na quinta-feira em sua conversa semanal pelo Facebook.
Ao contrário do chefe de Estado, o Exército levou a pandemia muito a sério desde o primeiro minuto. E lidou com ela infinitamente melhor pelos dados que oferece. Seguindo as recomendações da OMS, os militares têm uma taxa de mortalidade de 0,3% contra 2,5% dos civis. Um dos membros do trio escolhido por Bolsonaro na quarta-feira para substituir os demissionários é o general que implementou a bem-sucedida estratégia nos quartéis. A política brasileira é sempre uma caixinha de surpresas.
Concluída a tumultuosa semana, Bolsonaro já tem um novo ministro da Defesa mais alinhado ao seu estilo, Walter Braga Netto. Foi com ele que apareceu, sem máscara os dois, para pregar a participação das Forças Armadas na vacinação, ainda que, de novo, tenha pregado contra a política do “fecha tudo”. O presidente é muito popular entre os soldados e, principalmente, entre os policiais militares. A base bolsonarista nas redes age abertamente para politizar essas forças militarizadas subordinadas aos governadores dos Estados. Mais de uma vez o bolsonarismo já levantou a lebre no Congresso de que gostaria das polícias estaduais sob seu comando.
A incógnita é como evoluirá a relação presidente-militares-Forças Armadas durante os 18 meses que restam às eleições presidenciais. “Se os novos comandantes das Forças Armadas realmente querem diminuir a politização, terão que fazer algo, encorajar os militares na ativa que ocupam cargos no Governo a retornar às suas unidades”, diz o professor Heleno. Mas se mostra pessimista: “Não há o menor indício de que irão fazê-lo”.
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EL PAÍS
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