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Brasil fecha março como mês mais mortífero da pandemia e políticos fazem investida por vacinas fora do SUS

País beira 4.000 mortes nas últimas 24 horas, mas segue sem perspectivas de medidas restritivas nacionais. Congresso e Governo preparam guinada para que empresários possam comprar vacinas e imunizar funcionários

Geradores são instalados em cemitério de São Paulo para a realização de enterros noturnos em meio à escalada da pandemia no BrasilO Brasil fecha o mês de março com mais um recorde de mortes causadas pelo coronavírus: foram 3.869 notificações nas últimas 24 horas. Apesar da escalada da pandemia no país ―atual epicentro global, com sistemas de saúde colapsados em todas as regiões―, o Governo Federal não considera um lockdown nacional. A medida é defendida há meses por epidemiologistas como única forma de estancar em curto prazo o contágio e minimizar a pressão hospitalar, enquanto países da Europa, em situação muito menos grave, como a França, tem voltado a adotar restrições severas. O Governo Bolsonaro até abraçou tardiamente a defesa da vacinação em massa (ainda sem perspectiva de ser alcançada no curto prazo), mas não oferece soluções mais imediatas para evitar mortes e minimizar o caos que se instala nos hospitais. Há milhares de pessoas na fila de internação, faltam remédios para intubação e oxigênio. Enquanto isso, o Governo e o Congresso preparam uma guinada para ampliar a participação da iniciativa privada na vacinação contra covid-19, um movimento criticado por especialistas enquanto o país não conseguir vacinar os grupos prioritários.

“Estamos a poucas semanas de um ponto de não retorno na crise do coronavírus no Brasil”, afirma o neurocientista e professor catedrático da universidade Duke (EUA), Miguel Nicolelis, em sua coluna no EL PAÍS. Ele estima que, em breve, o país poderá chegar de 4.000 a 5.000 mortes diárias por covid-19. E projeta para julho um cenário catastrófico, com o Brasil chegando a um total de 500.000 vítimas da pandemia. Até o momento, março foi o mês mais letal da pandemia, quando o país registrou mais de 66.000 óbitos por covid-19 em um único mês. Nicolelis teme que, além do sistema de saúde, os serviços funerários também entrem em colapso, caso o chamado a um lockdown nacional, com bloqueios de circulação não essencial em aeroportos e estradas, não seja atendido. Na capital mais populosa do país, São Paulo, cemitérios passaram a funcionar à noite para dar conta da demanda de sepultamentos. “Se o colapso funerário se instalar neste país, começaremos a ver corpos sendo abandonados pelas ruas, em espaços abertos. Teremos que usar o recurso terrível de usar valas comuns para enterrar centenas de pessoas simultaneamente, sem urnas funerárias, só em saco plásticos, o que vai acelerar o processo de contaminação do solo, do lençol freático, dos alimentos, e com isso gerar uma série de outras epidemias bacterianas gravíssimas”, enumera. Mesmo assim, o Governo Federal segue rechaçando medidas com restrição nacional.

No mesmo dia em que o Brasil registrou o maior número de mortes desde o começo da pandemia até agora, o presidente Jair Bolsonaro voltou a criticar o isolamento social e pediu que governadores recuassem das medidas restritivas que têm adotado, com toques de restrição e fechamento do comércio. “Só temos um caminho: deixar o povo trabalhar. Os efeitos colaterais do combate à pandemia não podem ser mais danosos que o próprio vírus”, afirmou, sem máscara, ao anunciar o retorno de um reduzido auxílio emergencial. Minutos antes, seu ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, e os presidentes da Câmara e do Senado, Arthur Lira e Rodrigo Pacheco, haviam defendido o distanciamento social e o uso de máscaras como medidas preventivas, mas sem mencionar a necessidade de medidas restritivas. Da primeira reunião do comitê nacional de enfrentamento à covid-19, trouxeram um discurso de união entre os poderes para mitigar a crise, a defesa da vacinação em massa e a preparação de uma guinada legislativa para permitir que empresas privadas comprem imunizantes e possam imunizar seus funcionários e familiares sem ter de entregar todas as doses ao SUS, como preconizam as leis atuais.

“Tem uma discussão que inicia-se hoje na Câmara e tem que ser transparente, que é a possibilidade da iniciativa privada também adquirir vacinas, para que o empresário possa vacinar os seus funcionários e seus familiares, para manter a sua empresa, o seu negócio, de pé”, defendeu Lira. A permissão de compra de vacinas pela iniciativa privada tem sido criticada por especialistas, que argumentam que é papel do SUS distribuir as doses de forma igualitária no país e que caberia permitir a entrada da iniciativa privada apenas quando a maior parte dos grupos prioritários, mais vulneráveis à covid-19, estiver imunizada. Lira, porém, diz não ver conflito de interesses. “Essencialmente estamos em um momento de guerra e na guerra vale tudo para salvar vidas. (...) Qualquer brasileiro vacinado é um a menos na estatística do vírus.” Apesar dos movimentos políticos para retirar as amarras do setor privado na aquisição de vacinas, é pouco provável que empresários consigam efetivar compras no curto prazo, já que o mundo enfrenta uma corrida global pelos medicamentos e a maioria das farmacêuticas sustentam que, no momento, vendem doses apenas para o poder público.

O próprio Governo brasileiro, que diz já ter contratado mais de 560 milhões de doses, tem tido dificuldades com o cronograma de entrega. Até o momento, somente 6,2% deste montante foi distribuído aos Estados e a chegada de novos lotes ainda está repleta de incertezas, seja por atrasos na produção ou dificuldade de importação. O ministro Marcelo Queiroga tem dito que sua meta é vacinar um milhão de pessoas por dia em abril ― a metade do ritmo que ele mesmo estima que o PNI é capaz de alcançar, caso houvesse imunizantes suficientes. Sem vacinação em massa nem lockdown nacional, o Brasil segue em uma escalada caótica nas unidades de saúde e bate sucessivos recordes de mortes diárias pela covid-19. Há pessoas morrendo na fila por uma UTI e unidades de saúde funcionando com equipes médicas insuficientes e exaustas. Falta estrutura, remédios e até oxigênio. O ministro da Saúde admite que o parque nacional não dá conta da atual demanda de insumos e diz que negocia a importação de remédios enquanto estuda desviar a produção de oxigênio industrial para hospitais com as empresas.

Queiroga tem repetido que seguirá a ciência e até pede a cooperação da população para usar máscaras e evitar “aglomerações fúteis”, ensaiando uma defesa pelo distanciamento social que não costumava ser feita pelo seu antecessor Eduardo Pazuello. Mas tampouco contradiz o chefe sobre o lockdown, que ele considera uma “medida extrema” que não costuma ter adesão da população. “Precisa a população aderir a isso [distanciamento social], mas não é com lei”, afirma. Nesta quarta (31), Queiroga foi questionado em uma audiência pública na Câmara dos Deputados sobre o que pretendia fazer para salvar os jovens, que lotam leitos de terapia intensiva dos hospitais nesta fase da crise sanitária e ainda estão muito distantes de entrar aptos a serem vacinados. “A solução para os jovens é ter vacinas. Estamos buscando vacinas muito fortemente”, respondeu, admitindo a dificuldade de conseguir entregas no curto prazo.

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EL PAÍS