O presidente Bolsonaro olha o senador Rodrigo Pacheco durante pronunciamento nesta quarta-feiraO Brasil superou a trágica marca dos 300.000 mortos por covid-19 nesta quarta, 24, segundo os dados do próprio Ministério da Saúde. A vergonhosa marca vem no mesmo dia em que o novo ministro, Marcelo Queiroga, falou pela primeira vez como titular da pasta —o quarto do Governo Bolsonaro na pandemia, sucedendo Eduardo Pazuello. Suas posições frustraram quem esperava uma medida radical, para reverter a curva ascendente de mortes no país. Nesta quarta mais de 2.000 mortes, chegando a exatos 300.685 óbitos. Apesar do número assustador, que poucos países carregam, o ministro Queiroga descarta um lockdown nacional para estancar a sangria de mortes no Brasil. “Quem quer o lockdown? Ninguém quer o lockdown. Nós precisamos impor medidas sanitárias eficientes”, disse Queiroga. “Até porque a população não adere ao lockdown. Precisamos de máscaras e distanciamento.”
Se a restrição de circulação já era a solução óbvia há um ano quando o presidente Jair Bolsonaro fez uma transmissão em cadeia nacional de rádio e TV em que minimizava o impacto da covid-19, agora o desgaste político escala com a insistência da cartilha negacionista do Planalto e de seu novo ministro. A pressão dos brasileiros por medidas eficientes já chegou aos ouvidos do presidente nesta terça com um forte panelaço em diversas capitais do Brasil. O panelaço aconteceu enquanto Bolsonaro falava em cadeia nacional sobre o plano de preservar vidas com um ano atraso e mentindo sobre ações tomadas pela vacinação, um emaranhado de atrasos e decisões tida como equivocadas por especialistas. Agora, o Congresso Nacional também cobra ações, quando falta um ano para as eleições de 2022.
Nas últimas semanas, houve ameaças de retaliações em projetos de interesses do Governo no Parlamento caso o presidente não liderasse o combate à pandemia e deixasse de lado as picuinhas políticas de olho no calendário eleitoral. Na tarde desta quarta-feira, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), eleito com o apoio do Planalto, subiu o tom como nunca antes e, ao criticar a gestão da crise, pôs o impeachment na mesa de forma indireta: “Estou apertando hoje um sinal amarelo para quem quiser enxergar”, discursou no plenário da Câmara dos Deputados. “Os remédios políticos no Parlamento são conhecidos e são todos amargos. Alguns, fatais. Muitas vezes são aplicados quando a espiral de erros de avaliação se torna uma escala geométrica incontrolável. Não é esta a intenção desta Presidência.”
Não é uma advertência qualquer. Lira, que lidera o Centrão, o grupo de partidos de centro-direita que se tornou o principal eixo de sustentação parlamentar do Governo, é quem tem o poder de analisar qualquer um das dezenas de pedidos de impeachment contra o presidente ultradireitista e colocar um eventual processo em tramitação. Não foi o único sinal. Mais cedo, o parlamentar cobrou uma atuação mais incisiva do chanceler Ernesto Araújo nas negociações de vacinas e insumos. Foi em uma reunião na manhã desta quarta, quando Bolsonaro reuniu pela primeira vez a cúpula do Congresso, do Judiciário e governadores aliados para se discutir a crise. Lira se deparou com um Araújo, que balança no cargo, calado, e, por fim, afirmou que esse é o momento de retirar a ideologia do combate à pandemia. “Buscamos a união de todos para que possamos nos comunicar melhor e despolitizar a pandemia.”
O “sinal amarelo” do Centrão é de que não quer se associar, sem ponto de fuga, ao presidente que, há um ano, chamou a doença de “gripezinha” e pediu que governadores e prefeitos que iniciavam a implantação de medidas de restrição de circulação naquele momento abandonassem “o conceito de terra arrasada”. Então, o Brasil tinha então 46 mortos e o presidente brasileiro fazia aparições públicas sem máscaras em meio a aglomerações, o que seguiu repetindo durante os últimos meses. Somente agora, o Governo começa a ensaiar uma ação coordenada entre poderes, com um gabinete de crise que deveria ter sido montado no primeiro dia. Ainda assim, segue esbarrando na desorganização: nesta semana, quando o país atinge a vexatória marca de mortes, o Ministério da Saúde chegou a anunciar a mudança na forma de registrar as vítimas da doença, o que levaria a uma diminuição dos dados diários. Após queixas dos Estados, voltou atrás na alteração.
Bolsonaro prometeu criar um comitê nacional de acompanhamento da pandemia, que será composto por representantes do Executivo, de governos estaduais e do Congresso. A mudança, atrasada, vem na sequência do manifesto de um grupo de 1.500 economistas, banqueiros e empresários publicado no final de semana, que cobrava um confinamento nacional bem como o fim do falso dilema entre salvar vidas e recuperar a economia. “A vida vem em primeiro lugar”, disse o presidente na manhã desta quarta. Mas seu método para preservar vidas, como mostrou o novo ministro da Saúde, não casa com a emergência do momento. Bolsonaro deixou claro que, mesmo com a mudança temporária de discurso, ele seguirá defendendo o uso de remédios comprovadamente ineficazes no tratamento da covid-19, como cloroquina e ivermectina. “Tratamos da possibilidade de tratamento precoce, isso fica a cargo do ministro da Saúde, que respeita o direito e o dever do médico [para usar medicamentos] off label para tratar os infectados”, afirmou o presidente após um encontro com o presidente do Supremo Tribunal, Luiz Fux.
A sugestão da criação de um comitê foi feita por parlamentares e apresentada pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG). Na sua fala após o encontro, Pacheco reforçou que quem precisa liderar essa comissão é o presidente da República, mas se colocou à disposição para ser o interlocutor com os governadores dos 27 Estados e do Distrito Federal. “É preciso que estejamos todos imbuídos do propósito colaborativo de união nacional para dar colaboração do Estado brasileiro”, afirmou.
Sem poder compor o comitê por ter de se manter imparcial em eventuais julgamentos, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, comprometeu-se em buscar alternativas para agilizar a análise de processos que envolvam o combate à pandemia. O anúncio de criação de um comitê gerou reações descrentes entre parlamentares. O senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) disse que esse comitê chega com um ano de atraso e que é um “embuste”. “[É] só uma estratégia para dividir desgastes. Aceleração de vacinação, mais leitos de UTI e insumos? Nada, só enrolação”, afirmou em sua conta no Twitter. A criação do comitê também tem sido vista como mais um dos efeitos Lula no tabuleiro político. Há duas semanas, em sua primeira manifestação após ter seus direitos políticos restabelecidos, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) cobrou que Bolsonaro montasse tal comissão. “Muitas dessas mortes poderiam ser evitadas se o governo tivesse feito o elementar. A arte de governar não é fácil, é a arte de tomar decisão. Se o presidente respeitasse o povo, teria criado um comitê de crise em março de 2020”, declarou no dia 10.
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EL PAÍS
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