Rosilde Ferreira das Neves, 49 anos, mostra a geladeira queimada, e vazia, resultado do apagão em MacapáEnquanto a população de Macapá tenta se recuperar, ainda desnorteada, de uma sequência de apagões que começou no dia 3 de novembro, a Justiça Federal do Amapá resolveu agir. Nesta quinta-feira, o juiz João Bosco da Costa, da 2ª Vara de Justiça, determinou o afastamento da diretoria da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), responsável por regular o setor elétrico no país, e do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), responsável pela gestão do setor. De acordo com o magistrado, a investigação para esclarecer as causas do blecaute não terá eficácia caso os diretores permaneçam no cargo. A decisão se deu a partir do pedido do senador Randolfe Rodrigues (REDE-AP). “Eu nunca vi o povo sofrer tanto como nesses dias”, afirma o senador ao EL PAÍS em sua casa, em Macapá.
Na Baixada Pará, uma favela de Macapá situada em uma área de ressaca e considerada a maior de todo o Amapá, a população entrou em colapso com a perda do pouco que possuem para comer. Rosilde Ferreira das Neves, de 49 anos, perdeu sua velha geladeira, queimada após os picos de energia. “Hoje a gente não tem nada para comer”, afirma enquanto mostra o eletrodoméstico vazio. Ela e seus sete filhos vivem na mesma casa. As dificuldades não são de hoje, sobretudo com a pandemia de coronavírus. Mas os efeitos do apagão que deixou 13 dos 16 municípios amapaenses no escuro por quatro dias seguidos a partir do dia 3 de novembro —e que se repetiu nos mesmos lugares na última terça-feira, 17 de novembro— foram ainda mais severos para a população vulnerável da cidade. “O que a gente tinha aqui a gente perdeu... Nossa geladeira, nossas TVs velhas, ficou tudo queimado. As comidas que foram compradas com o dinheiro do auxílio [emergencial] apodreceram. Então, quando trazem água e comida, a gente abraça e louva a Deus, que tem enviado pessoas para ajudar”, afirma a irmã Ruth das Graças, 57, sobre a solidariedade da sociedade civil que chega até a comunidade.
Durante a crise do apagão de energia no estado do Amapá e a pandemia de Coronavirus, moradores da Baixada Pará, em Macapá, se organizam para suprir as necessidades básicas e as demandas da favelaA Aneel distribuiu uma nota nesta quinta-feira dizendo que respeita a decisão da Justiça Federal de afastar a diretoria, mas que ela atrapalha os esforços para investigar as causas dos blecautes e restabelecer o fornecimento de energia. A agência promete apresentar nos próximos dias um relatório sobre as causas do blecaute, investigadas pela Polícia Civil. “Todos os esforços, no atual momento, estão concentrados na normalização do fornecimento de energia no Amapá. Os geradores que vão suprir emergencialmente o Estado já estão em Macapá”, diz a agência. “Equipes da Aneel, inclusive, integram a comitiva do ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, ao Estado nesta quinta-feira que vai acompanhar o andamento dos trabalhos com vistas à plena normalização do atendimento”, afirma.
A cobrança pela presença do Governo se intensifica nas últimas semanas. No dia 6 de novembro, o presidente Jair Bolsonaro chegou a afirmar que o Exército e a Marinha haviam sido acionados e que a energia fora restabelecida. Mas o alívio durou muito pouco, a ponto de as eleições do dia 15 terem sido adiadas por problemas no abastecimento de energia.
Existe, nas palavras do senador Randolfe Rodrigues, “um apagão de responsabilidades” pelo menos nos últimos cinco anos. Rodrigues vê uma negligência por parte das autoridades públicas que deixaram de fiscalizar a subestação de energia. “O diretor-geral da Aneel é um cínico. Ele fala como se nada tivesse a ver com isso. Ele e toda a diretora da Aneel tem culpa, o ONS tem culpa, porque todos sabiam o que podia acontecer”. Para o senador, também faltou que o Governo Jair Bolsonaro e o Ministério das Minas e Energia interviessem com mais vigor para restabelecer o fornecimento de energia, e que o Governo estadual colocasse o poder público a serviço da população para amenizar as perdas.
Na mesma ação em que pediu a queda das diretorias da Aneel e do ONS, Rodrigues também demandou a retirada imediata da concessão da transmissão e distribuição de energia do Amapá, que hoje está nas mãos da Linhas de Macapá Transmissora de Energia (LMTE). A empresa é responsável pela subestação onde um transformador pegou fogo no dia 3 de novembro, dando início a um ciclo de apagões de proporções inéditas, se chama Linhas de Macapá Transmissora de Energia (LMTE). O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), também defende a cassação, apesar de ter dito num primeiro momento que o apagão era uma “fatalidade”.
A LMTE foi formada pela espanhola Isolux após esta ganhar em 2015, via leilão, a concessão da distribuição e transmissão de energia no Estado. Em dificuldades financeiras, a companhia espanhola vendeu o controle da LMTE em setembro de 2019 para a Gemini Energy, empresa controlada pelos fundos Starboard Asset (80%) e Perfin (20%), dedicados à gestão de investimentos em dificuldades financeiras, conforme adiantou o portal The Intercept Brasil. No fim do ano passado, um dos três transformadores, mais especificamente o reserva —aquele que é responsável por garantir a distribuição de energia caso haja problema nos demais— parou de funcionar. Quando os outros dois deixaram de funcionar por causa do incêndio, a estrutura não estava disponível para segurar o sistema. E o Amapá ficou no escuro.
Em plena pandemia, os seguidos blecautes no Amapá deixaram ainda mais evidentes suas contradições e distorções sociais, como bem retrata a situação das 1.500 famílias que residem na Baixada Pará e seus arredores. O Estado está situado no extremo-norte do país, no solo fértil da selva amazônica, “onde tudo que se planta, se colhe”, mas muitas pessoas passam fome. A capital Macapá foi construída às margens da foz do Amazonas, o maior rio de água doce do mundo, mas a falta de água é uma realidade na vida das pessoas. Estima-se que o saneamento básico chega a apenas 9% dos lares. Os demais dependem basicamente de poços artesianos e de sistemas elétricos de bombeamento, que deixam de funcionar com a falta de luz. Com a pandemia de covid-19, estima-se que os danos na saúde das pessoas serão ainda maiores. O Amapá também possui quatro usinas hidrelétricas, uma delas a primeira da Amazônia —construída nos 70 com os royalties da exploração do manganês. Mas, nos momento em que o Estado se encontrava sem luz, a maior parte de toda essa energia gerada —cerca de 900 megawatts/hora— era exportada para outros Estados. Pouco fica dentro do território amapaense.
Havia sinais de que essa tragédia na vida das famílias poderia acontecer. Meses antes, em 7 abril, a LMTE enviou um ofício à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), órgão federal que regula o setor, abordando os “Eventuais Impactos da Pandemia Causada pelo COVID-19 na Prestação do Serviço Público”, conforme revelou o The Intercept. O documento dizia, em suma, que a pandemia poderia “afetar as obras em andamento e a prestação dos serviços de operação e manutenção sob responsabilidade da LMTE”. Também buscava “notificar preocupação e resguardar o direito da concessionária em relação a possíveis efeitos, inclusive penalidades e/ou redução de receitas, decorrentes de eventos que não sejam possíveis evitar ou impedir, e que causem eventuais falhas e/ou atrasos na prestação do serviço público”. Em outras palavras, a LMTE não se responsabilizava para eventuais falhas que poderias acontecer —e aconteceram— na transmissão de energia.
No jogo de empurra-empurra, a Isolux, que até o ano passado era a empresa responsável pela manutenção da subestação, se exime de responsabilidade. O CEO da companhia espanhola no Brasil, David Barman, repetiu por e-mail ao EL PAÍS a justificativa que vem dando desde o início da crise: “Há uma grande confusão associada à Isolux. Em primeiro lugar, a [empresa] concessionária foi vendida há um ano, no final de 2019, a um fundo de investimentos”, explicou. “Segundo ponto, a concessão da qual se fala no Amapá, da LMTE, não controlava o fornecimento de energia. O fornecimento de energia é controlado pela Eletronorte e pelo ONS, as concessões da LMTE só colocam à disposição [da empresa] umas linhas elétricas e subestações para transportar energia”.
Por sua vez, a Eletronorte, subsidiária da estatal Eletrobrás na região amazônica, faz questão de frisar que não controla o sistema de distribuição e transmissão de energia do Amapá, conforme diz a nota distribuída na terça-feira passada após o último apagão. A reportagem também enviou uma solicitação para Gemini Energy, que detém atualmente a propriedade da LMTE, mas não obteve resposta. A LMTE não tem um canal de comunicação, mas nas ocasiões em que se manifestou disse estar “trabalhando ininterruptamente” para reduzir danos.
O senador Randolfe Rodrigues também pediu na Justiça o pagamento de duas parcelas do auxílio emergencial, de 600 reais, para a população amapaense mais pobre que foi afetada pelo apagão. Para Joca, da Baixada Pará, “o Governo precisa entrar, mas ele não vai e a gente nem espera que entre”. O que precisa, diz ele, “é que a sociedade civil continue ajudando” pessoas como Laíde Lopes de Novaes Cardoso, 69 anos.
Quando o relógio se aproxima das 19hm a Baixada Pará fica sem luz, por causa do rodízio de energia em Macapá que deixa os bairros com luz por três horas seguidas e outras três horas no escuro. O contador de histórias Josias Monteiro da Silva, mais conhecido como Joca, uma das principais referências na favela, mobiliza um pequeno grupo de voluntários. Eles se embrenham entre as palafitas construídas em cima de uma área de ressaca, com muito lixo e esgoto ao redor, para levar as doações feitas pela sociedade civil às famílias da comunidade. Até o momento, cerca de 400 receberam cestas básicas, além de “kits emergenciais” com água, fruta, mingau, biscoito, macarrão, entre outros alimentos. O rapaz, de 39 anos, conta que “já fazia antes” esse tipo de ação, “mas não para um número tão grande de pessoas”.
O que mudou com o apagão? “A gente depende do comércio que gira aqui dentro. Um compra do outro. É o que movimenta o pobre na Baixada e que não conseguimos executar mais”, ele explica. “Normalizando a energia, começa a normalizar o comércio, mas é preciso dar continuidade a esse atendimento. Não vai ser do dia para o outro que essas pessoas vão se restabelecer. Quem vende comida precisa refazer sua estrutura, precisa comprar alimento...”.
Tia Lala, como é conhecida na favela, vende churrasquinho de carne a dois reais. É o mínimo que consegue fazer para complementar a aposentadoria do marido doente, de 84 anos, além do auxílio ao idoso que recebe. Antes do apagão, também vendia baião, vatapá, maniçoba, risoto, macarronada... Mas seu freezer queimou com os picos de energia. “O que sobrava eu colocava nele, mas agora não tem onde colocar. Perdi tudo”, explica a senhora, que acaba doando para as pessoas o churrasquinho que não consegue vender. Também conta com a ajuda de comerciantes locais que não perderam seus eletrodomésticos para armazenar alguma comida. A solidariedade entre vizinhos é o que salva. “Mas no momento está tudo muito devagar. Tem dias que vendo uns 30 reais por dia”.
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EL PAÍS
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