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Em ensaio para 2022, extrema direita tenta deslegitimar processo eleitoral

Bolsonaro e aliados aproveitam atrasos na apuração para questionar sistema de votação. Para pesquisadores, setores radicais querem plantar semente conspiracionista para contestar eventual derrota na próxima eleição

Enquanto as zonas eleitorais ainda estavam abertas no pleito municipal deste ano, grupos de WhatsApp formado por apoiadores de Jair Bolsonaro já trocavam mensagens em ritmo frenético questionando a segurança do sistema de votação brasileiro e os resultados que viriam a ser divulgados mais tarde.

A movimentação conspiracionista rapidamente saiu dos grupos de mensagem privada para ser amplificada por políticos. Na noite de domingo (15/11), Joice Hasselmann, deputada federal e candidata a prefeita da capital paulista pelo PSL, compartilhou um post em sua página no Twitter que vinculava a lentidão na apuração dos resultados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a uma possível fraude.

Joice, que recebeu menos de 2% dos votos na disputa, escreveu: "Fraude? Será? Tem todo cheiro". Logo em seguida, seu post recebeu uma marcação adotada pelo Twitter para indicar mensagens potencialmente faltas em contexto eleitoral, com os dizeres: "Esta reivindicação de fraude é contestada". Depois, ela deletou o post.

Nesta segunda-feira (16/11), ao sair do Palácio da Alvorada, Bolsonaro também questionou o sistema de votação. "Nós temos que ter um sistema de apuração que não deixe dúvidas. É só isso. Tem que ser confiável e rápido. Não deixar margem para suposições. Agora [temos] um sistema que desconheço no mundo onde ele seja utilizado (…) Se nós não tivermos uma forma confiável de apurar as eleições, a dúvida sempre vai permanecer", afirmou.

Declarações de Bolsonaro colocando em dúvida as urnas eletrônicas, sem apresentar provas, não são uma novidade. Em 2018, ele afirmou, sem apresentar provas, que havia vencido no primeiro turno, mas fora vítima de fraude. Nesta segunda-feira, o presidente se aproveitou de problemas enfrentados pelo TSE no dia anterior.

A divulgação do resultado final atrasou em algumas horas. Inicialmente, o tribunal falou em um problema técnico em um supercomputador. Nesta segunda, o presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, afirmou que a pandemia resultou na demora de entrega de equipamento e impediu a realização de testes prévios no sistema. Paralelamente, o tribunal informou ter sido alvo de um ataque coordenado que tentou sobrecarregar e derrubar seus servidores no domingo, sem sucesso.

David Nemer, professor de estudos da mídia da Universidade de Virgínia, nos Estados Unidos, acompanha cerca de 70 grupos de WhatsApp de bolsonaristas. Ele afirma à DW Brasil que, nestas eleições, os grupos se dedicaram mais a questionar o sistema eleitoral como um todo do que a atacar candidatos específicos. "O bolsonarismo focou no sistema eleitoral, no [ministro Luis Roberto] Barroso, no TSE, e nas urnas. Queriam achar formas para deslegitimar o sistema", diz.

Segundo ele, o plano já estava traçado antes das eleições, mas acabou ganhando tração à medida que o TSE atrasava a divulgação dos resultados. O objetivo dos bolsonaristas, diz, "é plantar agora uma semente conspiratória para que, caso Bolsonaro não seja reeleito 2022, eles possam colher o fruto e dizer que o motivo da derrota foi uma fraude nas urnas".

Para levar essa estratégia adiante, Bolsonaro conta com blogueiros e youtubers de extrema direita, como Allan dos Santos, Bernardo Küster e Oswaldo Eustáquio. Nemer prevê que essa questionamento às urnas será "algo contínuo” nos próximos anos na extrema direita. "Vão ficar nessa pauta por um bom tempo”, diz.

"Eles querem que as pessoas não acreditem mais no sistema eleitoral, para que eles possam definir quem vai ser o próximo presidente", afirma Nemer, que em dezembro passado teve que deixar o país às pressas ao receber ameaças anônimas enquanto estava em São Paulo.

Risco à democracia

Um estudo realizado pela Diretoria de Análise de Políticas Públicas da FGV e divulgado em 6 de novembro, antes do primeiro turno das eleições, monitorou conteúdos que incitam a crença na existência de fraude nas urnas e de manipulação eleitoral, no Brasil, distribuídos no Facebook e no YouTube entre os anos de 2014 e 2020. 

A pesquisa concluiu que o número de posts apontando uma suposta fraude nas urnas costuma crescer a cada eleição. Mas, em 2020, até o mês de outubro, não havia superado o pico de 2018. Em sete anos, foram identificadas 337.204 publicações que colocavam sob suspeição a lisura das eleições brasileiras. A maior parte, 335.169, foi localizada no Facebook e somou 16.107.846 interações.

A descrença em relação à urna eletrônica não se resume ao instrumento de votação, mas projeta uma descrença no sistema democrático como um todo, afirma Odilon Caldeira Neto, professor de história contemporânea na Universidade Federal de Juiz de Fora e coordenador do Observatório da Extrema Direita.

Segundo ele, o ataque à urna acabou se tornando um "ponto de aglutinação" de diversas tendências do bolsonarismo, e está relacionado a uma agenda da extrema direita global. O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, é um exemplo desse fenômeno, ao questionar o processo de votação americano e não reconhecer explicitamente a vitória de Joe Biden.

A deslegitimação do sistema eleitoral também dialoga com um dos elementos que caracterizam o populismo: o estímulo à antítese entre uma ideia de "elite corrupta" e o "povo verdadeiro". "Eles afirmam que o processo institucional é ditado por regras da elite, numa dualidade que coloca a vontade do povo contra as instituições políticas e financeiras globais", diz. No fundo, trata-se de uma crítica ao próprio modelo de democracia.

Além das instituições, o efeito desse questionamento atinge o próprio equilíbrio psicológico dos eleitores, diz Nemer. Segundo pesquisas realizadas nos Estados Unidos, a exposição a retóricas conspiratórias sobre interferência nas eleições "leva a emoções negativas intensas, que geram ansiedade e raiva e prejudica o apoio às instituições democráticas", afirma.

Experimentos mostram que as pessoas que têm contato com teorias de conspiração sobre fraude eleitoral também são menos dispostas a aceitar o resultado de uma eleição contrária ao seus objetivos partidários.

"Se elas acreditam que houve fraude, não devem então fazer uma transição pacifica de poder. A alegação de fraude eleitoral atinge os próprios alicerces da democracia", afirma Nemer. Outros efeitos são a redução da participação política, da confiança em governos democraticamente eleitos e nas instituições.

Para que as democracias se defendam desse tipo de ataque, Nemer considera importante que a imprensa não dê espaço acrítico a teorias de conspiração, e que órgãos públicos sejam o máximo possível transparentes. Ele elogia o contato constante de Barroso com a imprensa durante estas eleições: "Quanto mais silêncio houver, mais se abre espaço para essas teorias", diz.

Caldeira Neto, do Observatório da Extrema Direita, defende a realização de campanhas contra a desinformação e uma articulação entre instituições para barrar a "normalização de discursos e práticas antidemocráticas".

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DW