Jair Bolsonaro durante evento no Palácio do Planalto nesta terça-feiraEnquanto o presidente Jair Bolsonaro diz que o Brasil tem de deixar de ser um “país de maricas” no combate à pandemia de coronavírus e intensifica a politização sobre as vacinas em teste, a agência responsável por avaliar os imunizantes luta para manter a imagem de um quadro técnico, sem interferência política. Criada há 21 anos, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) está sob fogo cruzado, em parte por conta dos discursos do presidente, que nesta terça-feira comemorou a decisão da instituição de suspender os testes com a vacina Coronavac, desenvolvida pela farmacêutica chinesa Sinovac e pelo Instituto Butantan, vinculado ao governo de São Paulo, gerido pelo ex-bolsonarista João Doria (PSDB) — atualmente, rival político do presidente visando as eleições de 2022.
Em evento no Palácio do Planalto, o presidente reclamou da intensidade da cobertura da mídia sobre a pandemia e fez um discurso com caráter homofóbico. “Tudo agora é pandemia, tem que acabar com esse negócio. Lamento os mortos, lamento. Todos nós vamos morrer um dia, aqui todo mundo vai morrer. Não adianta fugir disso, fugir da realidade. Tem que deixar de ser um país de maricas”, disse.
A Anvisa voltou ao centro do debate na noite de segunda, quando mandou parar as avaliações da vacina da Sinovac por causa da morte de um voluntário. Na manhã seguinte, sem apresentar provas, Bolsonaro afirmou a um seguidor que o questionava no Facebook, que a vacina Coronavac trazia “morte, invalidez e anomalia” e comemorou: “Mais uma que Jair Bolsonaro ganha”. Ao longo do dia, constatou-se que a morte do voluntário foi um suicídio, sem qualquer relação com os testes.
A decisão da Anvisa também colocou a agência em um choque de versões com o Butantan. Durante coletiva na tarde desta terça-feira, a liderança da agência disse encarar como uma decisão técnica a paralisação dos estudos e negou que o órgão esteja contaminado pela disputa política entre o Palácio do Planalto e Doria. Já em outra coletiva, na parte da manhã, o Butantan sustentou a posição de que o “evento adverso grave” observado em um voluntário do estudo clínico da Coronavac, usado como justificativa pela Anvisa, não teve relação com o imunizante e que a instituição teria sido notificada com antecedência.
“No momento, há uma guerra de narrativas que expõe o trabalho da Anvisa em uma conotação que não existe. Há apenas única agência, que é técnica, não há uma agência política”, afirma o diretor-geral da Associação dos Servidores da Anvisa (Univisa), Rodrigo Savini.
Uma das dificuldades encontradas pela Anvisa é a imagem inicial que o diretor-geral da entidade, o contra-almirante da Marinha Antônio Barra Torres deixou no público em geral. Pouco tempo depois de assumir a diretoria da agência, em maio, Barra Torres participou de uma manifestação ao lado do presidente Jair Bolsonaro em frente ao Palácio do Planalto, em Brasília. Na ocasião, a pandemia estava atingindo seu auge no país e os bolsonaristas ignoravam a gravidade da doença para pedir o fechamento do Supremo Tribunal Federal e do Congresso Nacional. “Naquela época emitimos nota condenando o comportamento do diretor-presidente. Mas de lá para cá, ele tem tido uma atuação técnica”, disse Savini.
A fala de Bolsonaro gerou reações no mundo político e as usuais notas de repúdio vindas do Legislativo, que tem mais de 50 pedidos de impeachment para serem encaminhadas pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), mas seguem parados. O deputado, contudo, foi um dos que puxou a fila das manifestações de ressalvas ao presidente. “Entre pólvora, maricas e o risco à hiperinflação, temos mais de 160 mil mortos no país, uma economia frágil e um estado às escuras. Em nome da Câmara dos Deputados, reafirmo o nosso compromisso com a vacina, a independência dos órgãos reguladores e com a responsabilidade fiscal”, afirmou Maia em seu perfil no Twitter. A pólvora, no caso, é um referência à outra parte da fala de Bolsonaro, que falou em defender a Amazônia com pólvora “quando acaba a saliva”, fazendo referência ao novo presidente eleito dos EUA, Joe Biden, que ameaça sanções econômicas caso o Brasil não reverta seus númetos em relação a queimadas e desmatamento.
Pressão
Ao mesmo tempo que esse embate político ganha contornos temerários em um órgão técnico, cresce no Legislativo e no Judiciário a pressão para que o Governo se explique oficialmente. Nesta quarta-feira, a comissão especial do Senado que acompanha as ações no combate ao coronavírus analisará requerimentos de convocação dos diretores da Anvisa, Antônio Barra Torres, e do Butantan, Dimas Covas, para justificar as razões que resultaram na suspensão dos testes. “Nesse momento não podemos permitir que se politize uma das vacinas. Todas serão bem-vindas”, disse o senador e presidente da comissão, Confúcio Moura (MDB-TO). A ideia dele é que as audiências com os representantes dos dois órgãos ocorram na sexta-feira.
Já no Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Ricardo Lewandowski atendeu a um pedido de partidos da oposição e decidiu que a Anvisa tem de apresentar seus argumentos oficialmente sobre a paralisação dos testes. Em seu pedido, os partidos opositores alegaram que a paralisação dos testes, mesmo sem comprovação do óbito com a vacina, traz um risco de lesão grave à saúde pública. O órgão tem até quinta-feira para se manifestar.
Entre parlamentares e lideranças políticas a sensação é de irresponsabilidade por parte do presidente. “É lamentável o que está acontecendo: politização da vacina que nos livrará do coronavírus. A decência e a saúde pública exigem pratos limpo: dado o que disse o Butantã, que a Anvisa se explique. E logo”, afirmou o ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso (PSDB) em sua conta no Twitter.
“Trata-se de mais uma atitude repugnante do Presidente de República. Ele se utiliza da morte de um paciente e da paralisação dos estudos clínicos de uma vacina que pode salvar milhares de vidas para se vangloriar”, disse o líder da minoria no Senado, Randolfe Rodrigues (REDE-AP). Na mesma linha seguiu o líder do PT no Senado, Rogério Carvalho. “A negligência é uma marca deste governo, que só politiza e não defende os interesses do nosso povo”, afirmou.
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EL PAÍS
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