Joe Biden e Kamala Harris em Wilmington, Delaware.Os Estados Unidos mudaram o rumo e colocaram um ponto final na era Trump. O democrata Joe Biden derrotou o republicano Donald Trump nas eleições 2020 e será o presidente dos Estados Unidos, de acordo com as projeções da imprensa e em meio a um escrutínio agônico que começou na terça à noite e já dura mais de quatro dias. Uma maré de participação, com impulso especial das mulheres e dos jovens, decidiu expulsar da Casa Branca Trump, o empresário imobiliário nova-iorquino que levou o populismo mais agressivo, beirando o xenófobo, ao centro do poder. A vitória de Biden, um político moderado de 77 anos, enfrenta a um Donald Trump que se declara em rebeldia e decidiu levar o resultado aos tribunais agitando infundadas acusações de fraude.
Biden será presidente após as eleições mais insólitas e importantes da história recente, marcadas pela pandemia e uma onda de comparecimento que não acontecia em 120 anos. A última atualização da contagem na Pensilvânia na manhã de sábado certificou Biden como o vencedor daquele território-chave e, com isso, o vencedor das eleições. Ele havia superado os 270 votos eleitorais necessários para conquistar a Casa Branca e Trump acabava de se tornar o primeiro presidente nos últimos 25 anos a perder a reeleição (depois de George Bush pai, em 1992) e o terceiro a sofrer tal derrota desde o Segunda Guerra Mundial (Jimmy Carter em 1980).
Assim que a grande imprensa certificou a vitória, por volta das 11h30 (horário de Washington), as ruas das grandes cidades explodiram de alegria e o centro da capital, uma cidade raivosamente democrática, tornou-se um mar de buzinas de carro, em grito sem fim. A fúria das cidades progressistas, afro-americanos e mulheres inundou as urnas e, em seguida, trouxe a euforia para as ruas. Kamala Harris, filha de pai jamaicano e mãe indiana, será a primeira vice-presidente mulher na história dos Estados Unidos. Uma barreira acaba de ser quebrada.
O vice-presidente da era Obama obteve uma vitória retumbante. Com os resultados de sábado, ele obteve quatro milhões de votos populares a mais que Trump, o que é uma vantagem de quase três pontos percentuais (uma das mais altas das últimas décadas). Recuperou os três principais Estados do cinturão industrial que condenou Hillary Clinton em 2016 por muito pouco (Michigan, Wisconsin e Pensilvânia), preservou todos os territórios que conquistou e acaricia, além disso, a conquista de feudos republicanos como Arizona e Geórgia, que não escolhiam um presidente democrata desde os anos 1990.
“Serei o presidente de todos os americanos, independentemente de terem votado em mim ou não”, prometeu Biden assim que o resultado foi confirmado. “É hora de baixar a temperatura e fechar as feridas, olhar para o outro, ouvir-nos novamente e deixar de ver os nossos adversários como rivais. Não são, são americanos”, frisou à noite, em seu discurso de vitória, em Wilmington (Delaware), seu berço político.
No entanto, horas muito difíceis o esperam. Trump toma para si a eleição e preparou toda uma artilharia judicial para contestar o escrutínio, levando o caso à Suprema Corte, se necessário, questionando o rigor do processo e a apuração dos votos antecipados. “Os votos legais decidem quem é o presidente, não a mídia”, disse o presidente em um comunicado. Horas antes, em sua conta no Twitter, ele escreveu em letras maiúsculas e pontos de exclamação: “Ganhei essas eleições, e com muita diferença.” Enquanto isso, Biden recebia as felicitações de alguns republicanos como o senador Mitt Romney ou o ex-candidato à presidência Jeb Bush.
A derrota do republicano significa um repúdio a uma era turbulenta e transmite uma poderosa mensagem para o resto do mundo, onde outros movimentos semelhantes estão começando a se desgastar. A queda de Trump não se traduz,no entanto, no fim das ideias e sentimentos que o impulsionaram, nem implica que o fosso social e cultural que divide este país. As manifestações durante a contagem dos votos, que incluíram trumpistas armados com fuzis, mostram a elevada tensão. As vitórias em alguns territórios cruciais foram muito estreitas.
Biden não foi enaltecido pelo entusiasmo ou pelo carisma, mas por uma colossal onda de rejeição a Trump. Esta começou a ser construída com aquela primeira Marcha das Mulheres, no dia seguinte à sua posse, em Washington; com as manifestações pelo clima ou com os protestos dos jovens contra as armas. Nas eleições legislativas de novembro de 2018 cristalizou-se com a maior vitória democrata desde Watergate e, neste verão, depois da dura resposta do mandatário às mobilizações contra o racismo, aumentou sua intensidade. A gestão errática da pandemia acabou estimulando os eleitores e nesta terça-feira eles fecharam seu caminho para um segundo mandato.
Os resultados de Trump, por outro lado, mostram a capacidade de mobilização do magnata. Em meio a uma grave crise econômica e de saúde, e após quatro anos de polêmica, que incluiu até um processo de impeachment, o presidente obteve sete milhões de votos a mais que em 2016 (o segundo mais votado da história). O sucesso do republicano não é uma coincidência, Trump não é o empresário fora da política que quer representar, é um candidato com um bom faro político. No entanto, não foi suficiente para impedir a pressão democrata.
Biden, de perfil centrista e quase octogenário, parecia há um ano uma aposta contrária aos tempos, alheia à nova força vital do Partido Democrata, distante dos pujantes discursos da ala esquerda e sem ímpeto suficiente para enfrentar um tigre político como Trump. Sua figura, porém, é a que mais gerou consenso entre as diferentes sensibilidades; sua estabilidade, sua moderação e suas irresistíveis doses de empatia fizeram dele aquele nome em torno do qual cerrar fileiras. Em primárias com mais de 20 pré-candidatos, erigiu-se em vencedor.
O futuro presidente norte-americano é descendente de uma família irlandesa trabalhadora, filho de um vendedor de carros Chevrolet de Delaware, um pequeno Estado situado a uma hora e meia da cidade de Washington. Nasceu em 1942 em Scranton, uma cidade mineira da Pensilvânia, mas seu pai perdeu o emprego e, quando tinha apenas 10 anos, a família se mudou. Em Delaware estudou Direito e também iniciou uma carreira política promissora e precoce. Foi eleito senador pela primeira vez em 1972, aos 29 anos, e lançou sua primeira candidatura à Casa Branca em 1987, com um desenlace para ser esquecido: retirou-se das primárias em meio a acusações de plágio. Nas primárias de 2008, diante de Barack Obama e Hillary Clinton, também saiu cedo, sem alternativas, mas o jovem Obama o escolheu como número dois e foi vice-presidente por oito anos.
Sua vida está marcada tanto pela ambição quanto pela tragédia. Quando completou 30 anos, o senador recém-eleito perdeu a primeira esposa e a filha de um ano em um acidente de carro. Em 2015 morreu de câncer outro de seus filhos, Beau, uma estrela em ascensão do Partido Democrata que sempre o incentivou a continuar.
Nesta terça-feira, ele cumpriu a promessa que fez a Beau e o sonho que começou a acalentar há meio século. Quando prestar juramento terá 78 anos e será o presidente mais idoso a chegar ao Salão Oval. Tudo indica que será presidente de um único mandato. Durante a campanha, para apaziguar receios sobre sua idade, sua equipe adiantou que não se candidataria à reeleição, o que direciona os holofotes para sua companheira de chapa, a futura vice-presidenta Kamala Harris.
A senadora da Califórnia, de 56 anos, será a primeira mulher a ocupar esse cargo e, portanto, uma candidata mais do que potencial para substituir Biden em 2024. A ascensão do número dois de Obama ao cargo mais poderoso do mundo não resolveu a questão da renovação geracional do partido, assunto pendente para a próxima eleição. Harris, uma ex-procuradora negra, de pai jamaicano e mãe indiana, já foi uma das pré-candidatas nas primárias democratas deste ano.
Mas ainda faltam quatro anos muito difíceis. O futuro presidente enfrenta o desafio de tirar o país de uma grave crise econômica e sanitária que ninguém previa há apenas um ano e deve fazer isso em meio a uma grave fratura política e social. Os norte-americanos estão mais divididos do que há quatro anos em questões como raça, gênero ou armas, e a campanha se desenrolou de forma especialmente rude. O Congresso continua fragmentado, e com os resultados disponíveis não parece que os democratas reconquistarão o Senado e o mandato corre o risco de um bloqueio legislativo se não houver como os dois partidos trabalharem conjuntamente.
As feridas do processo eleitoral complica as coisas. Trump sinalizou até o final que não aceitaria facilmente a derrota e agora quer impugnar os resultados. É o homem que usa a palavra “perdedor” como insulto mais recorrente e costuma dizer “ganhar” para falar sobre o progresso e o desenvolvimento dos Estados Unidos. Nesta terça-feira, enquanto os norte-americanos votavam, falou com franqueza a um grupo de jornalistas na sede do Comitê Republicano da Virgínia: “Vencer sempre é fácil, perder não. Não para mim”, disse.
O novo presidente presta juramento em 20 de janeiro de 2021, mas a Administração Trump já tem data de morte. Com ela se vai um personagem irrepetível, um vendaval. O confronto é seu habitat e a rejeição lhe dá alimento. Mantém uma histórica relação de amor e ódio com os meios de comunicação: ele os demoniza ao mesmo tempo em que se mostra mais acessível do que qualquer outro presidente que se recorde em Washington. Politicamente venenoso, jogou gasolina em cada fogo que o país enfrentou: desde se mostrar equidistante entre os neonazistas e os manifestantes antirracistas de Charlottesville em 2017 até incentivar a revolta contra as ordens de confinamento por causa da pandemia nos Estados democratas.
Pelo menos até a pandemia, o republicano deu argumentos às suas bases para que votassem nele novamente. Conseguiu levar adiante a maior redução de impostos desde a era Reagan, promoveu a desregulamentação dos negócios, especialmente em detrimento das normativas ambientais, e cumpriu suas promessas de mão dura com a imigração até onde o Congresso e a Suprema Corte lhe permitiram.
Na oposição, a rejeição democrata a Trump vai muito além da agenda conservadora que promoveu, tem a ver com o estupor que causou em meio mundo. Os insultos, os acenos para a extrema direita, as pressões sobre o Departamento de Justiça e medidas migratórias tão duras como a separação de crianças migrantes e seus pais desenharam uma imagem irreconhecível dos Estados Unidos. O Partido Republicano de Abraham Lincoln, que nos últimos quatro anos se dobrou aos desígnios de Trump, começa agora seu particular processo de reflexão.
Biden significa o regresso de uma figura do establishment, um perfil de consenso para um tempo de luto. Mais de 320.000 pessoas perderam a vida devido ao coronavírus somente nos Estados Unidos e não há um horizonte claro para o retorno à normalidade. Trump, um empresário com grande faro político, temeu isso desde o primeiro momento. As pressões sobre a Justiça da Ucrânia no verão de 2019 para que anunciasse investigações por corrupção que enlameassem o vice-presidente de Barack Obama derivou no julgamento do impeachment. Trump o venceu protegido pelos republicanos do Senado. Agora os norte-americanos lhe mostraram a porta.
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EL PAÍS
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