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Economia

O coronavírus dos ricos e o coronavírus dos pobres

Aqueles que têm tudo de sobra atravessam a tempestade com menos sacrifícios do que os pobres, para os quais a epidemia é apenas um elemento a mais da dor em que já vivem

Um barbeiro da favela de Mandela, no Rio de Janeiro, trabalha com máscara de proteção durante pandemia de coronavírusJá se escreveu muito sobre como a tragédia do coronavírus nos iguala a todos porque quando golpeia não conhece classes nem ideologias. Mata ricos e pobres. Isso é, no entanto, uma meia-verdade, porque, como sempre na história, aqueles que têm tudo de sobra atravessam a tempestade com menos sacrifícios do que os pobres, para os quais a epidemia é apenas um elemento a mais da dor em que já vivem.

Pode parecer, mas não é uma blasfêmia dizer que os pobres sofrem menos do que os ricos nestas tragédias porque estão acostumados a conviver com a dor, a frustração e a morte.

Talvez por isso, os que mais se opõem ao confinamento que pode salvar muitas vidas são aqueles para quem não faltará nada durante a quarentena, nem mesmo um bom hospital caso o bicho chegue a pegá-los, como afirmou o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta.

Não vimos, de fato, multidões de pobres saírem às ruas para protestar contra o isolamento, apesar de serem eles os mais martirizados por essa medida, pois ela os impede até de sair para ganhar o pão para sua família. Os pobres não têm cadernetas de poupança, e sim dívidas, e a epidemia os deixa mais desprotegidos do que ninguém.

Estão sendo, paradoxalmente, os mais ricos que estão forçando as manifestações contra o isolamento —que, segundo a ciência, é em todo o mundo o único antídoto até hoje para salvar vidas. Sim, o vírus não é classista, mas as tremendas desigualdades da nossa sociedade cruel continuam vivas e até se agigantam durante a epidemia.

Para os mais ricos, os da Casa Grande, o que interessa é que a máquina da produção seja posta em marcha o quanto antes para que a Bolsa volte a subir.

Talvez seja por isso que personagens políticos como o presidente Jair Bolsonaro se revelem desprovidos de sentimentos humanos elementares de compaixão pelos que mais sofrem as consequências da epidemia, e cheguem a negá-la.

Isso explica por que esses pequenos aprendizes de tiranos não se preocupam com aqueles que mais vão morrer com o vírus. Sabemos que são os idosos e os que já sofrem de alguma doença crônica. E essas vítimas são as que menos interessam a todos que veem o mundo sob o prisma do mero lucro ou do mero interesse político. Para eles, idosos e doentes são improdutivos em nossa sociedade do consumo e da vertigem da produtividade a qualquer preço.

Os psicólogos e psiquiatras estão apontando as consequências negativas que terá, para nosso cérebro, a crise mundial que afeta a humanidade inteira. E é aterrador. É um rio de angústias profundas que nossa psique está acumulando, e ainda não sabemos quais serão suas consequências finais.

Mas, dentro de tanta dor, angústia e morte, há um aspecto esquecido que poderia nos ajudar a resgatar um sentimento perdido em nossa sociedade, infectada pelo ódio político e social. Refiro-me a um certo despertar do mundo das emoções, as mais positivas, as que nos curam das psicoses e pareciam adormecidas em uma sociedade contagiada por ódios e discriminações.

É como se o mundo do dinheiro frio e até o do tédio daqueles que têm a mesa farta tivesse se apoderado de um mundo que já é incapaz de emoções humanas profundas.

No entanto, a emoção nos redime de nossos pessimismos estéreis, nos aproxima, nos faz descobrir algo que acreditávamos ter perdido para sempre imersos, como estamos, na sociedade do egoísmo e da inveja. As emoções são o oxigênio da nossa vida interior.

A epidemia, com suas dores, está nos devolvendo, por exemplo, o gosto pela emoção gerada pela solidariedade e pela empatia com os demais, que nos parecem mais próximos e iguais do que nunca.

É verdade que as sequelas psiquiátricas provocadas pelo desespero da separação física podem aumentar durante a crise, como se vê pelo aumento da violência doméstica em algumas famílias. Mas também é possível que o confinamento forçado sirva para que muitos casais e famílias valorizem e reconquistem a intimidade perdida e a alegria de estar juntos.

São essas emoções que o isolamento desperta repentinamente em nós, fazendo com que nos sintamos mais amigos e receptivos à dor e à alegria alheias.

Cenas como a de idosos até de cem anos que saem dos hospitais curados do vírus, sob aplausos de médicos e enfermeiros, eram inéditas até ontem.

Não podemos esquecer, nem mesmo nestes momentos trágicos, que a perda das emoções cria mundos paralelos de ódio e incompreensão da dor e da pobreza alheias.

As emoções, em vez disso, afastam os demônios da vingança. A emoção positiva está mais disposta ao perdão do que ao castigo e nos prepara melhor para compreender a dor e a solidão dos outros.

Quem é incapaz de abrigar emoções diferentes das criadas pela violência e pela morte nunca entenderá o que a ternura e o abraço significam.

O que os nazistas, que arrastavam mães com seus filhos para os crematórios nos campos de concentração, sabiam sobre emoções como a compaixão pelos outros?

Os incapazes de emoções são os mais próximos dos psicopatas que matam com a maior frieza do mundo. Onde estava a emoção nos interrogatórios policiais sob tortura ou nos pelotões de fuzilamento das ditaduras?

Se o coronavírus nos servir para despertar os melhores sentimentos de emoção diante da felicidade alheia, sentimentos que a luta política envenenada aniquilou, a pandemia não terá sido inútil.

Nada seria mais positivo para nosso mundo amargurado e cada vez mais injusto e com maior capacidade de segregação que nascesse um rio de emoções reprimidas capaz de nos redimir de tantos ódios acumulados.

Só aqueles que têm a alma seca de emoções não conseguem entender certas correntes de emoções positivas que só apreciamos quando as perdemos.

É por isso que todos os ditadores ou aspirantes são sempre os mais alérgicos às emoções que salvam e unem a humanidade na busca de uma felicidade que não precisaria matar nem humilhar para se sentir em paz com os outros.

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El País