Territórios registram altos números de focos de calor em setembro, após área desmatada mais que dobrar em 2019. Com presença crescente, invasores apostam na regularização, inclusive loteando áreas dentro das reservas
Das cinco terras indígenas (TIs) que mais queimaram em setembro no Pará, quatro estão na bacia do rio Xingu, somando 83% dos focos de calor nesse tipo de área no estado. As TIs Kayapó (do povo mebêngôkre kayapó), Apyterewa (dos parakanã), Cachoeira Seca (dos arara) e Trincheira Bacajá (dos xikrin) têm também altos índices de desmatamento: em 2019, estavam nas primeiras posições, em toda a Amazônia.
O grande número de queimadas deste ano acompanha o aumento exponencial do desmatamento em 2019, quando a área de floresta derrubada nas quatro terras indígenas mais que dobrou em relação ao ano anterior. O fogo completa, assim, o ciclo do desmatamento, iniciado com a retirada da floresta.
Os dados de desmatamento e queimadas nesses territórios tradicionais e os relatos dos indígenas indicam uma relação entre o aumento da presença de invasores com um aumento da retirada de mata e focos de fogo, que ameaçam os povos indígenas do Xingu.
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Mais de 60% dos focos de calor registrados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) em terras indígenas localizadas no Pará, entre 1o e 30 de setembro, foram na TI Kayapó, que tem 3,2 milhões de hectares.
Segundo Bhepnhoti Athydjare Kayapó, da Associação Floresta Protegida, as queimadas que invadem o território vêm principalmente de fazendas de gado do lado de fora. "O fogo entra e começa a se alastrar onde é mata fechada, não tem como ninguém apagar esse fogo. Agora tá começando a chover, aí tá diminuindo”, conta o Kayapó.
Dentro da TI Kayapó, há ainda focos próximos de áreas de garimpo, não pela atividade mineradora em si, mas por serem locais que passam a ser desmatados, povoados pelos garimpeiros, que por vezes se utilizam do fogo no entorno de seus acampamentos.
Apyterewa tem alta densidade de focos
Nos últimos sete dias, entre 24 e 30 de setembro, é a TI Apyterewa, de 773 mil hectares, que ocupa o topo dos casos de fogo (46,8% do total em TIs do estado, no período). Os maiores causadores das queimadas são invasores, principalmente pecuaristas, que provocam uma série de danos ao território.
"Queimada, tem muito. Garimpo, tem muito. Invasor novo, tem demais também. Tão derrubando e queimando a floresta”, relata a liderança Temekwaryyma Parakanã, da aldeia Xaytata.
As aldeias da Apyterewa ficam na beira do rio Xingu, no igarapé Bom Jardim e na área do Paredão. Os parakanã têm plena posse de apenas 20% da terra indígena. Na maior parte do território, estão invasores que instalam vilas, grilam terras, retiram madeira, abrem lavras ilegais de garimpo e áreas de pastagem para gado.
Entre os invasores, há também colonos usados por fazendeiros e madeireiros para ampliar a apropriação não indígena do território. "As pessoas que tão lá, tão loteando a TI Apyterewa. Há muito tempo, a luta é pra que tenha a desintrusão da TI”, diz o indígena Xokarowara Parakanã.
A desintrusão da Apyterewa, que significa a retirada de não indígenas, era uma das condicionantes para a instalação da hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu. Além do afastamento dos invasores não ter sido cumprido, a ameaça ao território é reforçada por decisões como a tomada pelo ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, que abriu possibilidade para uma ‘conciliação' entre a União e invasores que contestam a demarcação da terra.
Enfrentando diversos conflitos, a TI Trincheira Bacajá, com 1,6 milhão de hectares, tem invasores em três áreas principais: uma no município de Pacajá, outra ao lado da TI Apyterewa e outra perto da TI Ituna-Itatá (terra indígena mais desmatada na Amazônia em 2019). As invasões na Trincheira Bacajá envolvem casos de grilagem e revenda de terra, além da presença de fazendas de gado e produções agrícolas, como de cacau.
"Nossa aldeia é pertinho dos invasores. Já desmataram muito. E nós ficamos vendo fogo e fumaça perto de nós”, conta Bekoro Xikrin, da aldeia Kenkro.
"São os invasores que tão tocando fogo na floresta. Porque, nós, indígenas, a gente controla. A nossa roça, a gente controla. Na hora de tocar fogo, a gente faz um aceiro, fica controlando pro fogo não passar pra floresta. A gente controla. Agora, eles, não. Tão tocando fogo aí adoidado. São os invasores que tão tocando fogo”, reitera Bebere Bemarai Xikrin, presidente da Associação Instituto Bepotire Xikrin.
Segundo os xikrin, invasores já foram retirados da TI pelos próprios indígenas, pelos órgãos públicos em ocasiões anteriores, mas eles sempre voltam. Há uma base no território, instalada pela Norte Energia, também como condicionante de Belo Monte, mas sem a presença de agentes da lei, apenas com vigilantes contratados, que, no máximo, registram o que ocorre. Ultimamente, por conta da pandemia do novo coronavírus e de ameaças sofridas, os xikrin têm evitado ir a essas áreas invadidas. Eles reivindicam que o Estado atue para resolver a situação.
Já na TI Cachoeira Seca, de 734 mil hectares, a presença de não indígenas é anterior à criação do território, estabelecida como compensação de Belo Monte. Lá, o fogo tem relação com a presença crescente da pecuária. "O principal problema da TI Cachoeira Seca é a invasão para criação de gado de grandes pecuaristas. Grandes madeireiros e políticos dos municípios também estão investindo em gado dentro da TI”, revela um agente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) que já atuou na região. No território dos arara, foi instalada, recentemente, uma base fixa do órgão, na tentativa de inibir mais invasões e práticas criminosas.
Agentes públicos encontraram cerca de um milhão de metros quadrados tomados por garimpeiros dentro da Terra Indígena ApyterewaOs relatos ouvidos pelo InfoAmazonia indicam que, embora as pressões sobre as terras indígenas na porção paraense da bacia do Xingu sejam antigas, essa recorrência de invasões e prática de ilícitos no interior dos territórios protegidos dos povos tradicionais se intensificou durante os governos Michel Temer e Jair Bolsonaro.
Aumento exponencial
Os dados do Prodes/Inpe evidenciam o avanço desenfreado nos incrementos de desmatamento nas TIs Cachoeira Seca, Apyterewa, Trincheira Bacajá e Kayapó. Enquanto, em 2017, elas tiveram 32 km² de área desmatada, a extensão suprimida passou para 94 km², no ano seguinte, e 201 km², em 2019.
Em um ano, o fenômeno quadruplicou no território dos parakanã, passando de menos de 20 km² de novos desmatamentos, em 2018, para 85 km², em 2019. De toda a área já desmatada na TI, mais da metade (54,69%) foi aberta nos últimos cinco anos, corroborando os relatos de aumento exponencial da velocidade de invasão e atos predatórios no território.
As quatro TIs citadas estão entre as áreas protegidas que formam o Corredor Xingu de Diversidade Socioambiental, garantindo conectividade e resiliência à floresta.
"Esse é um corredor que tem terras indígenas e unidades de conservação. As terras indígenas são a maior parte desse território, e são as áreas mais e melhor conservadas. A gente afirma, com toda a clareza, que, nos lugares onde tem povos fazendo uso tradicional do território, tem floresta”, diz Biviany Rojas, coordenadora do Programa Xingu, do Instituto Socioambiental (ISA).
"Isso mudou, de dois anos pra cá, porque há uma contraofensiva de ocupação de terras indígenas sem precedentes, e os povos indígenas estão sendo acuados. Na Apyterewa, os parakanã têm feito tentativas de criação de novas aldeias em áreas que eles já não conseguem fazer, porque estão totalmente ocupadas. Talvez a Trincheira Bacajá seja o caso mais claro desse ataque às terras indígenas, dessa coisa que começou em 2018 e, com o início do governo Bolsonaro, parece que teve uma permissão que, de fato, autorizou a entrada nos territórios”, comenta Rojas.
Em todo o país, segundo o relatório do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), divulgado esta semana, o número de casos registrados de invasões em terras indígenas saltou 134%, em 2019.
Descontinuidade de ações
Para tentar enfrentar a situação descontrolada, há um ano, a Polícia Federal realizava na Apyterewa ações da operação Azougue, que inutilizou máquinas e apreendeu mercúrio, ouro e munições no garimpo denominado Pista 2, de cerca de 1 milhão de metros quadrados. Ninguém foi preso durante a operação. Em abril deste ano, uma operação do Ibama flagrou estruturas de acampamento e escavação, além de maquinário pesado vigiado por guarda armada.
A falta de ações continuadas de fiscalização compromete o combate à entrada de invasores e atividades irregulares nas TIs. "Você faz o trabalho. Quando vira as costas, você perde todo o trabalho que fez. Por isso que a presença constante é necessária. São quadrilhas que estão envolvidas por trás disso. Se você não consegue ficar, não consegue avançar na investigação”, explica o agente do Ibama.
O Ministério Público Federal (MPF) informou, em nota, que vem emitindo recomendações, desde o ano passado, para que o Ibama realize ações de fiscalização e contenção do avanço do desmatamento em terras indígenas e unidades de conservação no Pará, além de fiscalizações em garimpos clandestinos nas terras indígenas Trincheira-Bacajá, Apyterewa, Ituna-Itatá e Cachoeira Seca.
Segundo a nota, o MPF também atua contra o desmonte da política de fiscalização ambiental, "que identificamos como causa principal desse incremento significativo do desmatamento, das invasões e queimadas em terras indígenas”. Um dos exemplos dados é a série de ações que motivaram a suspensão da instrução normativa n° 9, da Fundação Nacional do Índio (Funai), que liberava o registro de grilagem em terras indígenas ainda não homologadas pelo governo federal.
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DW
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