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Reforma administrativa poupa elite do funcionalismo e pode dar “cheque em branco” a Bolsonaro

Fatiada, proposta prevê que presidente possa extinguir fundações e autarquias sem a autorização prévia do Congresso. Texto restringe carreiras do Estado, mas não define quais são

Rodrigo Maia, o ministro Jorge Oliveira, e o líder do Governo, Ricardo Barros, na entrega da reforma administrativaPara enviar sinais ao mercado financeiro e mostrar ao Congresso Nacional que tem interesse em reduzir os gastos com a máquina pública, o presidente Jair Bolsonaro enviou nesta quinta-feira a sua reforma administrativa. O documento foi entregue pelo ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Jorge Oliveira, ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). O deputado disse que pretende acelerar a sua votação para ser aprovada ainda este ano, mesmo que as sessões sejam remotas e as comissões que fazem uma análise prévia dos projetos de lei não estejam em pleno funcionamento. Representantes do servidores, no entanto, apostam que o texto só será votado no ano que vem.

Além das incertezas políticas, o aguardado texto não agradou completamente nem os que defendem há anos das mudanças dentro do funcionalismo público, como o fim da estabilidade para todas as funções. Conforme especialistas ouvidos pela reportagem, da forma como foi elaborada, fatiada e sem detalhamentos de carreiras ou financeiros, o texto traz instabilidade para o funcionalismo, privilegia o alto escalão dos servidores e pode passar um “cheque em branco” para o presidente, pois permite que acabe com órgãos do Executivo sem o aval do Parlamento.

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“Há uma desigualdade e injustiça salarial enorme dentro do serviço público”
A reforma, uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) que precisa passar pela Câmara e também pelo Senado, abrange, em tese, funcionários públicos em todas as esferas, ou seja, atualmente cerca de 11,4 milhões de pessoas, mas não valerá para os atuais ocupantes dos cargos, apenas para os que entrarem nas carreiras. Apesar do discurso liberal e de corte de privilégios, o Governo Bolsonaro preferiu não comprar a briga com o atual quadro.

A proposta não fala nada sobre cumprimento do teto salarial para servidores, uma regra sempre desrespeitada, e também poupou das mudanças os militares e representantes das carreiras do topo do funcionalismo público, como deputados, senadores, juízes, promotores, procuradores e desembargadores. A justificativa dada por técnicos da Economia é que os militares não são considerados servidores públicos e já tiveram suas alterações no regime alterada em recente reforma enviada ao Legislativo. Sobre os demais funcionários, afirmaram que eles são membros dos seus Poderes, e não servidores. Portanto, caberia ao próprio Poder apresentar suas reformas.

O argumento é questionado por opositores. “Essa reforma administrativa aprofunda desigualdades e não reduz os gastos públicos, não toca nos privilégios. Se o Parlamento quer fazer alguma mudança, tem primeiro dar o exemplo”, diz o líder da oposição ao Governo no Senado, Randolfe Rodrigues (REDE-AP).

Na apresentação que detalhou a PEC, os técnicos do Governo informaram que a preocupação do Executivo é financeira, mas não detalharam o tamanho da economia com as alterações legislativas. Afirmaram que isso viria em uma segunda etapa, quando medidas complementares fossem enviadas. Pelo que chegou ao Legislativo, as alterações só valem para novos servidores, não para os atuais.

A proposta estava pronta havia dez meses, mas o presidente estava reticente em enviá-la por entender que entraria em confronto com uma boa parte da população. Ainda assim, não a enviou por completo. O Ministério da Economia disse que outras duas fases devem ser mandadas nos próximos meses, de maneira fatiada, assim que as discussões começarem a avançar no Legislativo.

Outra alteração na PEC é a possibilidade de, por um simples decreto, sem a necessidade de debate com o Congresso, o presidente extinguir ou modificar autarquias e fundações, desde que não gere impacto financeiro. Neste grupo estão órgãos como as agências reguladoras (ANEEL, ANCINE, ANATEL, ANVISA) e institutos como o Ibama e ICMBIO ―responsáveis pela fiscalização ambiental – ou Incra― que trata da reforma agrária.

Para especialistas ouvidos pela reportagem, faltou o Governo estabelecer um diagnóstico sobre o funcionalismo público e intensificar o debate com as carreiras antes de se enviar a sua PEC. “É uma reforma muito abstrata”, ponderou a professora e coordenadora do Núcleo de Estudos da Burocracia da Fundação Getulio Vargas, Gabriela Lotta. “O Governo não conseguiu dimensionar o impacto orçamentário nem demonstrar em que medida essa proposta vai melhorar o serviço público”, complementou o presidente do Fórum Nacional Permanente das Carreiras Típicas de Estado (Fonacate), o auditor Rudinei Marques.

Para a professora Lotta, quando os detalhes não são apresentados, passa-se um “cheque em branco para o presidente fazer o que bem entender”. A proposta acaba com o regime jurídico único dos servidores e cria cinco distintos. Também prevê a manutenção da estabilidade apenas para carreiras de Estado, ainda que não defina quais seriam essas carreiras. Na prática, quem não for da carreira de Estado não tem a garantia de emprego. “No Ministério das Relações Exteriores, todos os funcionários são estáveis. Do agente de portaria até o diplomata. Isso não faz sentido”, afirmou o secretário-adjunto de Desburocratização, Gestão e Governo Digital, Gleisson Rubin. Lotta questiona: “Ele não detalha, por exemplo, quais são as carreiras de Estado. Só dizem que elas existem. Mas quem deveria definir quais são essas carreiras é o Congresso, não o Executivo”, afirma Lotta.

O representante da Fonacate, Marques, por sua vez, diz que, se aprovada da maneira que está, a reforma vai ajudar na precarização do trabalho público. “Do jeito que está, os funcionários do Ibama, da Receita Federal, da Polícia Federal, dos órgãos de controle não teriam a estabilidade adequada para exercerem suas funções”, afirmou. E completou: “Teríamos muita interferência e um serviço público aparelhado para atender determinados interesses políticos e pessoais”.

Daniel Ortega, especialista sênior para o setor público do Banco Mundial, diz que a reforma apresentada por Bolsonaro toca em quatro pilares fundamentais para qualquer mudança na área: fiscal, flexibilidade das contratações, gestão das carreiras e a avaliação de desempenhos. “São temas complexos para se debater porque tem muitas partes interessadas”, aponta.

Ortega, contudo, diz que o Governo tem de tomar o cuidado para não transformar os servidores públicos em vilões da máquina pública. “Quando se valoriza o trabalho do servidor público, se tem um impacto diretamente na prestação de serviços que todos os brasileiros recebem. Eles não podem ser vistos só como uma questão fiscal”. No ano passado, o Banco Mundial apresentou um estudo para o Planalto que tinha como objetivo embasar a reforma.

Só no âmbito federal, a folha de servidores representa o segundo maior gasto da União, 337,3 bilhões de reais, ou 22% do orçamento anual. Fica atrás apenas dos gastos com Previdência Social. Ainda assim, a distribuição é muito desigual, com servidores federais ganhando bem mais, na média, que os municipais, por exemplo. Apesar dos discursos de que há uma profusão de servidores, os dados mais recentes da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) mostram que o Brasil tem 12% de sua força de trabalho no poder público. A média dos 32 países pesquisados por esse organismo internacional é de 21%. No topo, está a Dinamarca, com 35% e, na base, a Colômbia, com 4%. Os dados são de 2015.

O texto agora entra na batalha de lobbies do Congresso. Mesmo com a pressa em se aprovar a PEC, há dois cenários que dificultam a sua rápida tramitação: a pandemia que faz com que as sessões sejam virtuais, o que dificulta a realização de audiências públicas, e as eleições municipais, quando boa parte dos deputados e senadores se ausentam das sessões para se dedicarem a campanhas eleitorais próprias ou de seus aliados. Entre os servidores públicos, a conta é que a proposta deve ser votada só no ano que vem.

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El País