Menos de seis meses depois de registrar oficialmente sua primeira morte por covid-19, o Brasil ultrapassou neste sábado (08/08) a marca de 100 mil óbitos pela doença. Foram mais 905 mortes registradas nas últimas 24 horas, elevando o total para 100.477, segundo dados do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass). No mesmo dia, o país ainda cruzou a marca de 3 milhões de casos identificados da doença, com o registro de quase 50 mil novas infecções.
Contudo, especialistas e instituições de saúde alertam que os números reais de casos e mortes devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.
Mas mesmo os números oficiais já representam um dos maiores desastres sanitários da história brasileira. Desde a morte do primeiro paciente por covid-19 – uma mulher de 57 anos em São Paulo, em 12 de março – é como se metade da população de Itajaí (SC) tivesse desaparecido. Em poucos meses, a covid-19 matou no Brasil praticamente o mesmo número de pessoas que a tuberculose vitimou no país em mais de duas décadas.
Desde maio, o país vem registrando com regularidade cerca de mil mortes por dia. Em meados de julho, a Organização Mundial da Saúde (OMS) apontou que a epidemia no Brasil seguia em expansão, mas que seu crescimento parecia ao menos ter estabilizado e chegado a um platô. Ainda assim, trata-se de uma estabilização com altos números de mortes e de novos casos, que ainda não começaram a baixar.
Segundo a OMS, aquele seria o momento de iniciar esforços para derrubar esses índices e finalmente controlar a doença. No entanto, não há nenhum sinal de que haja vontade política para que isso ocorra em breve. É como se essa rotina de centenas de mortes diárias tivesse sido incorporada ao cotidiano.
Na quinta-feira, dois dias antes da marca de 100 mil mortos ter sido cruzada, o presidente Jair Bolsonaro mais uma vez mostrou que seu governo se resignou com os números. "A gente lamenta todas as mortes, vamos chegar a 100 mil, mas vamos tocar a vida e se safar desse problema", disse.
Não é um comportamento muito diferente daquele que o presidente adotou em março, quando o país registrou oficialmente sua primeira morte por covid-19. Em seis meses, o presidente intercalou minimização do perigo, indiferença, zombaria, desprezo, sabotagem das medidas de isolamento social, propaganda de remédios sem comprovação científica e disseminação de notícias falsas.
Apenas um país acumula mais mortes e casos do que o Brasil: os EUA, também governados por um líder populista, Donald Trump, a quem o presidente brasileiro emula, seja na inação, no negacionismo e na promoção de remédios "milagrosos", seja nos ataques a organismos internacionais.
Em 22 de março, Bolsonaro disse que o número de mortes por coronavírus no Brasil não ultrapassaria os 800 óbitos pela gripe H1N1 em 2019. À época, a doença já avançava com força em países como a Itália, que já registrava mais de 600 mortes por dia. Dois dias depois, seria a vez de Bolsonaro chamar pela primeira vez a covid-19 de "gripezinha” e estabelecer o padrão de minimização da doença pelo seu governo.
Presidente Jair Bolsonaro sabotou medidas de distanciamento e alimentou boataria sobre o vírusMeses depois, dois ministros que tentaram aplicar medidas para conter a doença foram forçados a sair, e o país segue sem um titular da Saúde desde meados de maio. A União parece ter desistido há muito tempo de tentar implementar uma política nacional de enfrentamento da doença em colaboração com estados e munícipios. No final de julho, relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) apontou que o Ministério da Saúde havia gastado somente 29% do dinheiro que recebera para as ações de combate ao coronavírus.
Diante desse quadro, o governo federal tem preferido transferir o fracasso do combate ao coronavírus para a conta dos governadores e prefeitos, que já haviam sido alvos de ataques do presidente à época da imposição das primeiras medidas de isolamento, em março.
Entre as autoridades municipais e estaduais, muitas também sucumbiram à pressão incentivada por Bolsonaro e vêm implementando políticas erráticas de flexibilização do isolamento, mesmo com os casos continuando a aumentar, facilitando ainda mais a propagação do vírus. Os governos também têm falhado em ampliar o número de testes e rastrear doentes e seus contatos. Outros políticos, como o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, são suspeitos de simplesmente desviarem recursos destinados ao combate à doença. Assim, velhas mazelas brasileiras, como a corrupção e a ineficiência de autoridades, amplificaram o perigo.
Com esse vácuo na liderança, tornaram-se comuns cenas de multidões nas grandes cidades brasileiras, com pessoas agindo como se o pior já tivesse passado. Outras se refugiam no negacionismo, repetindo mentiras propagadas por redes de apoio ao governo, entre elas a de que o número de mortes estaria sendo inflado artificialmente por prefeitos sedentos por recursos.
Considerando como a ação política contra o vírus se desenvolveu nos últimos meses, não é exagero afirmar que esse marca de 100 mil mortes era uma tragédia anunciada.
O Brasil teve inicialmente a vantagem de ter sido atingido pela pandemia semanas depois de várias nações europeias, o que poderia ter proporcionado mais tempo para se preparar.
Mas em vez de olhar para casos bem-sucedidos, como a Alemanha ou a Nova Zelândia, a liderança do país preferiu justificar sua inação elogiando os modelos de países como o Reino Unido e a Suécia, que inicialmente evitaram adotar medidas amplas de isolamento. As duas nações continuaram a ser elogiadas mesmo após a explosão dos seus índices de casos e mortes.
O governo Bolsonaro chegou até mesmo a copiar uma malfadada campanha lançada em fevereiro na cidade de Milão e que pregou a reabertura do comércio poucos antes da explosão no número de mortes no norte da Itália.
Protesto contra a falta de ações das autoridades para conter o avanço da doençaE quando os casos começaram a se acumular, o governo federal, além de estimular a boataria sobre números inflados, ainda adotou uma postura "otimista" sobre a crise, preferindo propagandear um "número de curados" da doença, minimizando a contagem de mortos e não procurando saber se os que se livraram da doença não ficaram com sequelas. "O Brasil tem o maior número de curados", alardeou um cínico "Painel da Vida" do governo na primeira vez em que o país registrou mais de mil mortos num dia.
No início de junho, esse comportamento se tornou mais extremo quando o Ministério da Saúde, agora com um general interinamente no comando – mas na prática sob o controle total de Bolsonaro – passou a esconder os números da pandemia. A medida só foi revertida dias depois por ordem do Supremo Tribunal Federal (STF), mas levou o Brasil a se juntar, mesmo que por um breve período, a países autoritários como o Irã e o Uzbequistão, que sistematicamente escondem seus números.
Com os militares ocupando todos os postos-chave do ministério e obedecendo Bolsonaro sem questionamentos, o comando da pasta abandonou ainda a defesa do distanciamento social. O general Eduardo Pazuello, que comanda a pasta interinamente, ainda tentou emplacar amadores para alguns cargos, como o criador de um curso de inglês, que desistiu após conceder uma entrevista catastrófica. O general foi mais bem-sucedido ao arrumar um posto para uma amiga de décadas em Pernambuco. Durante a gestão interina de Pazuello, iniciada em 15 de maio, o país registrou mais de 84 mil mortes por covid-19 e de 2,6 milhões de casos.
O governo Bolsonaro ainda instrumentalizou a pandemia para promover sua agenda extremista. Em vez de tratar a doença como um problema sanitário, ela se tornou mais uma frente da "guerra cultural" do bolsonarismo. É o principal símbolo dessa tática é a hidroxicloroquina, um remédio contra a malária, que foi inicialmente promovida em círculos radicais de direita na internet e pelo presidente dos EUA, Donald Trump.
Transformada em arma política, a cloroquina não demonstrou sucesso contra a covid-19 em estudos pelo mundo. Mas a falta de comprovação científica não inibiu Bolsonaro. No dia 29 de março, ele afirmou que a droga seria uma "cura". "Deus é brasileiro, a cura tá aí", disse. "Está dando certo em tudo que é lugar." Meses depois, ele ergueria uma caixinha do remédio como se fosse uma hóstia para um grupo de apoiadores.
Para Bolsonaro, a existência de um suposto tratamento eficaz se encaixa na sua estratégia de instar os brasileiros a voltar ao trabalho, propagandeando que a doença poderia ser facilmente tratada com um fármaco barato no caso de uma infecção. Mas a entrada em cena do remédio também permitiu que seus apoiadores e seu círculo radical rotulassem os críticos da estratégia do governo como "torcedores do vírus” e desviassem o foco sobre a falta de ações efetivas do Planalto, como se o avanço dos casos e mortes fosse culpa dos céticos da cloroquina.
O desleixo do governo federal se reflete até mesmo dentro do Palácio do Planalto, que virou um local de surto do vírus, com 70 casos registrados entre servidores em julho. Oito ministros já foram infectados, além do casal presidencial.
Nesta semana surgiu mais um sinal de como o Ministério da Saúde – que atualmente tem o Exército como sócio – continua a encarar a pandemia.
Na segunda-feira, a agenda do ministro interino tinha apenas duas audiências. A primeira era um encontro com defensores de aplicação de ozônio pelo ânus para tratar covid-19 – prática sem nenhuma comprovação e que foi ridicularizada após o prefeito de Itajaí defender sua adoção.
O segundo item da agenda: uma visita do deputado Osmar Terra (MDB-RS), um notório negacionista da pandemia, difusor de fake news sobre a doença e que conspirou para derrubar o primeiro ministro da Saúde de Bolsonaro, Luiz Henrique Mandetta. Terra já afirmou, entre outras coisas, que a epidemia no Brasil terminaria em abril (depois atualizou a previsão para junho) e que apenas 2 mil pessoas morreriam de covid-19 no país.
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DW
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