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Opinião

Democracia consensual contra a tirania da maioria

Por Davi Lago*

Que é democracia? Em seu famoso discurso em Gettysburg, Abraham Lincoln disse que “a democracia é o governo do povo, feito para o povo e pelo povo, e responsável perante o povo”. O crédito desta definição é, na verdade, de Daniel Webster, que a elaborou 33 anos antes de Lincoln em outro discurso. Nesta ideia de “governo pelo povo e para o povo” surge uma questão essencial: e quando o povo estiver em desacordo? E quando o povo tiver preferências divergentes? O politólogo Arend Lijphart ressalta que há duas respostas principais: a resposta da “democracia majoritária” e a resposta da “democracia consensual” - também conhecida como  “consenso majoritário”. Na democracia majoritária, a resposta é simples e direta: deve-se governar para a maioria do povo. Este é o âmago do modelo majoritário de democracia. A resposta alternativa, no modelo da democracia consensual é: deve-se governar para o máximo possível de pessoas. Deste modo, o modelo consensual concorda com o modelo majoritário ao aceitar que a regra da maioria é melhor que a regra minoritária, mas aceita a regra majoritária apenas como um requisito mínimo: em vez de se satisfazer com estreitas maiorias tomadoras de decisão, tenta maximizar o tamanho dessas maiorias; sua lógica de ação visam à ampla participação no governo e ao amplo consenso nas decisões políticas que o governo irá tomar. Assim, o modelo majoritário concentra o poder político nas mãos da maioria, enquanto o modelo consensual tenta partilhar, dispersar e limitar o poder de várias maneiras.

Este aporte teórico ajuda a compreender a situação brasileira. Desde as manifestações de 2013, predomina uma alta divergência de opiniões políticas que encaminhou nossa sociedade para um modelo brutalizado de democracia majoritária: competitivo e combativo. Respaldado pela insatisfação popular, o jogo entre “governo” e “oposição” brasileiro ficou marcado pela truculência nos pleitos eleitorais de 2014, 2016 e 2018. O problema do partidarismo exagerado é que ele facilmente se degenera em fanatismo. O filósofo Julián Marías chega a definir fanatismo como “partidarismo em sua forma extrema”. Quando o fanatismo político se estabelece no seio de uma democracia, o sistema é testado agudamente. Por um lado, o governo tende a confundir a “posse” do poder como a “propriedade” do poder, e é tentado a aparelhar estruturas públicas para fins particulares e partidários. Neste ínterim, a laicidade estatal é desrespeitada, a prerrogativa do poder é confundida com licença para discursos de ódio e desrespeito aos valores mais básicos da civilidade. Por outro lado, a oposição tende a confundir o combate às ideias e ações governamentais com a destruição do governo a todo e qualquer custo. O objetivo da oposição deixa de ser “contribuir com a sociedade”, para simplesmente “tornar-se governo”. Como afirmou Marías, “há grupos, que podem ser partidos inteiros, dedicados a protestar sistematicamente contra tudo – especial se é algo bom, se é um acerto”. Isso introduz uma corrupção intrínseca na democracia, ela adoece para um permanente vale-tudo eleitoral.

Neste clima de vale-tudo, diz Marías, “os atos reprováveis, inclusive manifestamente indecentes, não trazem más consequências a seus autores; pelo contrário, dão-lhes notoriedade, popularidade; no momento adequado, votos; e são eles poder”. O problema, é que a irresponsabilidade de atores políticos fanáticos, inexperientes, oportunistas, improvisados, que almejam o poder pelo poder, terminam por subverter a própria democracia. O clima de “tirania da maioria” não pode nortear a república. Como destaca Lijphart – e outros filósofos políticos como Robert Dixon Jr., Hans Hattenhauer, Werner Kaltefleiter, Robert Dahl e S. E. Finer – é necessário reconhecer a democracia consensual como um tipo alternativo e igualmente legítimo de condução democrática do poder. A virtude da democracia consensual é buscar consensos mais amplos no que é interesse de todos; o desafio da democracia consensual é que ele pressupõe lideranças políticas mais maduras, tanto no governo quanto na oposição. Democratas genuínos tem aversão à ideia do totalitarismo e combatem os delírios daqueles que desejam poder sem limites.

A democracia é o regime político legítimo em nossa época e vale a pena conhecer melhor sua estrutura de funcionamento. O povo que preza pela democracia deve cobrar responsabilidade das autoridades eleitas – os governantes são meros representantes e funcionários do povo. De acordo com o Artigo 1º da Constituição Federal de 1988, o Brasil “constitui-se em Estado democrático de direito”, com cinco fundamentos: “I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político”. As autoridades eleitas têm o dever constitucional de reger suas ações baseadas na “dignidade da pessoa humana”. O povo tem total autonomia para exercer sua cidadania elogiando ou criticando o governo. Os fundamentos constitucionais da democracia brasileira precisam ser respeitados por todos os brasileiros e todas as brasileiras. Preconiza o parágrafo único do Artigo 1º de nossa Carta Magna: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.

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* Davi Lago é professor e pesquisador do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da PUC-SP